Gravar o que se cala: uma investigação sonoro-poética no Vale do Côa
Lea Czeresnia Taragona,Projeto artístico do Mestrado em Artes e Tecnologias do Som, ano letivo 2022/23, realizado por Lea Czeresnia Taragona e orientado por Bruno Pereira e Marco Conceição.
O que suscita o encontro com as sobrevivências? Como escutar o que se cala? Como falar se calando? Instalação criada a partir de residência de três dias em Penascosa e em Ribeira de Piscos, Átri(t)o busca fazer soar as polirritmias silenciosas do Vale do Côa, em direção a uma escuta trans-coclear.
Introdução
O passado é o que é – ou foi – mas também
é algo que descobrimos e criamos através
de um desejo de saber o que é ser humano,
em qualquer lugar.
Jerome Rothenberg
Algures nos anos 90, eu era criança e folheava uma enciclopédia de história da música. Foi quando senti pela primeira vez a nostalgia que nunca me abandonaria: a impossibilidade de ouvir os sons não gravados, de tentar interpretar os não notados. Eram tantos os sons que nunca mais ecoariam – que nunca mais ecoarão. Ao longe, no fim da cidade-que-não-tem-fim, enxergava esse enorme tsunami que se afastava, um tsunami que poderia engolir o mundo, das vozes hoje mudas, imenso grito silencioso, que me deixava sem olhar para trás. Eu, no entanto, órfã de origem de mundo, nunca cessaria de chamá-lo. Chamaria por nomes inventados, ouvidos em meio a ventanias e trovoadas, nomes que batem portas e janelas, que fazem cair as panelas onde uma avó um dia cozinhou. Não haveria outra arqueologia possível senão a dos sonhos, das memórias de infância, para tornar audíveis os cantos perdidos em anônimos jazigos do tempo.
Não seria surpreendente, portanto, que, quando ouvisse pela primeira vez falar em arqueoacústica e arqueologia experimental em meados de 2020, essas palavras me puxassem feito ímã, e que eu passasse a gravitá-las. Nelas, pensei, habitavam receptores poderosos de estrelas distantes, de seus minúsculos rastos.
Foi da boca da arqueóloga Mila Simões de Abreu que as ouvi, em uma conferência online de som e tecnologia. Apaixonada, ela contava sobre essa área de pesquisa recém surgida, desenvolvida principalmente a partir dos anos 2000, centrada nas únicas evidências sonoras que restam dos tempos remotos: as estruturas acústicas, cujo estudo começou a expandir nossa compreensão sobre a relação de nossos antepassados com o som.
Intrigante é a constatação de que, muitas vezes, os locais escolhidos para as pinturas e gravuras rupestres eram também pontos onde o som e seus ecos, o som e suas reverberações, atuavam de forma singular – algo que pode ter tido um impacto na decisão por estes lugares em particular para as expressões artísticas anciãs.
Durante a mesma fala, Mila comentava sobre as pesquisas que decorriam no Vale do Côa, no nordeste de Portugal, e eu soube então que teria de lá estar.
Novembro de 2021. Pela primeira vez estou diante de um dos painéis de xisto do Parque Arqueológico do Côa, em Penascosa. As gravuras imóveis sobrepostas, os auroques, cabras, cervos e cavalos, continuam sua dança milenar. Uma cabra encara a outra, e esse olhar cria uma ponte sobre o rio. Entreolham-se há vinte mil anos, entreolham-se agora. Entre elas, nós. Sinto que me veem também, que faço parte deste salto. Entreolhamo-nos, e desse encontro nasce a origem (Ursprung) benjaminiana, o turbilhão no rio do devir. Sou devir-gravura, a cabra gravada devir-humano, e pulo em direção ao desconhecido.
O Parque Arqueológico do Côa é, até o presente momento, o mais importante conjunto de figurações paleolíticas ao ar livre do mundo. São cerca de 1200 rochas gravadas, que compreendem períodos da Pré-História, Proto-História e História. Tão surpreendente quanto isso, é o fato de a primeira rocha ter sido descoberta apenas em 1991. Na ocasião, o arqueólogo Nelson Rubanda acompanhava a construção do que seria a barragem do rio Côa, e notou algo que se assemelhava a desenhos gravados na pedra, onde é hoje o sítio arqueológico da Canada do Inferno.
Por conta de um olhar mais demorado e de um bocado de sorte, iniciou-se uma discussão que abarcou toda a sociedade civil, dividida entre aqueles que defendiam a preservação do que poderia vir a ter uma importância histórica imensa, e os que eram a favor de sua inundação – e provável destruição-, em prol de uma rápida resolução de problemas sociais relativos ao acesso à energia da população de Vila Nova de Foz Côa. O movimento pela preservação, puxado por ativistas como Mila Simões de Abreu, António Martinho Baptista, Mário Varela Gomes e João Zilhão, ganhou muita força através da participação estudantil e espalhou-se pelo país, culminando na criação do Parque em 1996, e em seu reconhecimento pela UNESCO em 1998 como Patrimônio Imaterial da Humanidade (Queirós, 2016).
No livro "Diante do Tempo" (2015), Georges Didi-Huberman descreve o espanto diante de um fresco de Fra Angelico dos anos 1440 que não constava em nenhum livro de história da arte e que, no entanto, era um assombro pela diferença que guardava em relação aos quadros de seus contemporâneos. Aquilo que para o escritor assemelhava-se a fogos de artifício a explodirem na tela, um proto-Pollock do século XV, ficou praticamente invisível durante os séculos subsequentes, como se nenhuma relevância tivesse.
Para compreender o quadro, as motivações por trás dele, o enigma de seu pigmento projetado num instante perpétuo, Didi-Huberman percebeu, porém, que não bastaria ter acesso a escritos da mesma época (havia apenas um que fazia referência ao artista, datado de trinta anos após sua morte). Em um movimento aberrante a algumas visões do que é fazer/ escrever história, daqueles a quem ele chamaria “historiador fóbico do tempo”, o autor sugere não só que não existiria fuga ao anacronismo, como seria precisamente essa fatalidade algo de mais-valia:
Soberania do anacronismo: em alguns pedaços de presente, um artista do Renascimento - que acabava de projetar justamente o pigmento branco sobre uma superfície de afresco vermelho emoldurada em trompe-l'oeil - terá concretizado para o futuro essa verdadeira constelação, feita imagem, de tempos heterogêneos. Soberania do anacronismo: o historiador que, hoje, remetesse ao único passado 'eucrônico' – ao único Zeitgeist de Fra Angélico - falharia completamente com relação ao sentido de seu gesto pictural. O anacronismo é necessário, o anacronismo é fecundo, quando o passado se revela insuficiente, até mesmo constitua um obstáculo à sua compreensão. (Didi-Huberman, 2015)
Não é muito também o que sabemos a respeito da arte e dos artistas do Côa, das concepções de mundo destes humanos que viveram nessa região particular dezenas de milhares de anos atrás. A potência dessa arte que entretanto ressurge apenas agora, como que sobressaltada (sprunghaft), reside nesta trama de tempos complexos sobrepostos, na polirritmia da dialética em repouso, do relâmpago que há no encontro entre agoras e outroras.
Quando as primeiras gravuras foram feitas, estávamos em plena era glacial. Os mais recentes estudos arqueológicos e antropológicos apontam para a probabilidade de que a maior parte dos grupos de seres humanos da época mantivessem organizações sociais e políticas sazonais, metade do ano congregárias e outra metade em pequenos bandos de forrageadores. Pessoas que habitavam lugares diversos se reuniam de tempos em tempos para trocar conhecimentos e ferramentas, inclusive com outros hominídeos (Graeber & Wengrow, 2022).
Seria Foz Côa um destes lugares de congregação? E as imagens de cervos, auroques, cabras e cavalos uma forma de reconhecerem-se uns aos outros, uma espécie de marcador identitário?
As pedras devolvem-me as mesmas perguntas. São caleidoscópios, brinquedos quebrados de nossa infância, riscados por linhas que vibram.
Só posso dizer disso, destes cortes que atravessam os tempos, como emissões extraterrestres vindas de 20.000 anos-luz e que, ao lado de outras de 10.000, 5000 ou 2000 anos, formam constelações, mapas por onde nos orientamos. Percorro as gravuras como uma adivinha que lê o futuro nas palmas das mãos, como alguém que interpreta sonhos; “a história da arte é uma história de profecias”, diz Walter Benjamin, a quem, segundo Didi-Huberman, não há “história possível sem uma teoria do 'inconsciente do tempo'”(Didi-Huberman, 2015).
Só posso dizer de como esses cortes me atravessam no tempo, de como nossas superfícies se encontram, do atrito entre eu e o Outro.
As superfícies das rochas fazem ressoar os sons. São outros os sons, mas a maneira como ressoam se manteve praticamente intacta, e essa é uma pista da maior importância. Os sons que nós e os outros animais emitimos são informados pelo exterior, pelos sons que lá estavam antes de nós, e pela maneira como nos são devolvidos aos tímpanos. Manipulamos a pressão do ar, mas o meio já lá está. Somos escultores aéreos, a lançar projéteis.
Em maio de 2022 voltei ao Vale do Côa munida de gravadores digitais e um saco de dormir. Pelos próximos três dias estaria em contato íntimo com as gravuras de Ribeira de Piscos e Penascosa, com as quais dialogaria e cantaria. A residência, que só foi possível graças ao apoio do Museu do Côa, resultou em uma instalação multimídia apresentada em maio de 2023, com o nome de Átri(t)o.
As páginas que se seguem são apontamentos e desdobramentos sobre este processo, sobre essa investigação sonoro-poética. Elas se dão em forma de diário, em um movimento consciente de trazer à tona a impossibilidade da imparcialidade, a ficção sempre presente no documentário, o documentário sempre presente na ficção.
Não se trata de negar a escrita científica, mas sim de afirmar a legitimidade da arte e da poesia como formas de conhecimento, as quais urge engajar-se de forma tão séria e dedicada quanto a criança ao jogo. “Quando falo de poesia, não penso nela como gênero. A poesia é uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade”, ouço Tarkovski dizer (1998).
“I don't want to speak about, just to speak nearby”, responde a realizadora Trinh T. Minh Ha em seu aclamado documentário Reassemblage (1982). Assim como ela, não me atrevo a falar sobre os/as artistas do Côa, mas tão somente a falar por perto. Se há uma distância abismal entre nós, há também um resquício qualquer de lembrança, de reconhecimento. Tento imitar a dança gravada na pedra. A cabeça do cavalo se movimenta e eu movimento minha cabeça tentando perseguir o instante fugidio do encontro. Tento ver nos olhos do cavalo os olhos da pessoa que o desenhou. Invento uma lembrança. Quero atravessar o espelho dos tempos. Tento ouvir tua voz, e a ouço. Ouço-te a percutir essa pedra, e a entoar tuas profecias. E você, me ouve?
Escuta trans-coclear das utupës
Saber de cor o silêncio
– e profaná-lo, dissolvê-lo
em palavras.
Orides Fontela
Uma brasileira em Portugal, mais precisamente no nordeste de Portugal. Uma brasileira em um sítio rupestre, em meio a gravuras de 20 000 anos, no nordeste de Portugal, em um completo deslocamento espaço-temporal. Tudo é estranho para a(o) estrangeira(o) - a(o) estrangeira(o) é estranha(o) a tudo. No entanto, há algo ali de espelho, de estranha-familiaridade, que me convoca.
Tal qual no ensaio ficcional-filosófico "Missão Homo Sapiens Sapiens", escrito pelo filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser, em que, durante uma expedição de um grupo de seres humanos pré-históricos em busca de outros humanoides, há um encontro destes pesquisadores com os Neandertais, e algo extraordinário ocorre: reconhecem-se (Flusser, 1998).
Ao entrarmos em contato com Arte Paleolítica, também reconhecemo-nos nas figuras gravadas nas pedras, na necessidade de gravá-las. O encantamento surge pela semelhança, não pela diferença. Nasce do espanto daquilo que permanece em nós.
Venho aberta, mas não vazia. Trago-me, inevitavelmente; repleta de anacronismos e de conceitos do ultra-mar. São máquinas para a compreensão do outro.
O primeiro passo em direção ao desconhecido não poderia se dar de outra maneira que através da escuta das superfícies, sinestésica, trans-coclear, das imagens.
Seth Kim Cohen, em seu livro “In the Blink of an Ear” (2009), seguindo o conceito duchampiano de uma arte não-retiniana, desenhou as bases para se pensar uma arte sonora não-coclear, a partir do rechaço à ideia schaeferiana de som-em-si, pontuando as potencialidades de uma arte sonora conceitual, comunicativa, política.
Essa pureza (do som-em-si), a meu ver, só poderia existir como metafísica. A sugestão de uma pureza de experiência não adulterada e não contaminada antes da captura linguística busca um retorno a uma escuridão nunca presente, romantizada e pré-iluminista. Ainda, se alguns estímulos realmente provocam uma experiência que precede o processamento linguístico, o que podemos fazer com essas experiências? (Kim Cohen, 2009)
A que ele acrescenta:
O encontro crucial não é com o som-em-si, mas com categorias de experiência e identidade; com questões de naturalidade ou normalidade de uma classe de atividades; e com outros eus envolvidos em suas próprias categorias, experiências, questões e atividades. Em vez do mutismo paradoxal do som em si, temos a loquacidade de múltiplas malhas simbólicas, com suas matrizes sobrepostas em cascata até o infinito. (idem)
Ouço aqui também os ecos de Brandon LaBelle: “O som nunca é um assunto privado” (LaBelle, 2014) e, ainda,“necessariamente gera ouvintes e uma multiplicidade de 'pontos de vista' acústicos, acrescentando ao evento acústico operações de sociabilidade” (idem).
Seria então necessário ter consciência dos afetos envolvidos nessa produção e recepção, ainda que incontroláveis, e ter em conta a percepção inevitavelmente multisensorial, simbólica e linguística que envolve o fenômeno sonoro. Uma escuta superficial, em contraposição à escuta profunda, escuta que percorre as bordas gravadas das coisas, onde ocorre o atrito, onde ocorre o encontro. Escuta das cascas:
Podemos pensar que a superfície é o que cai das coisas: que advém diretamente delas, o que se separa delas, delas procedendo, portanto. E que delas se separa para vir rastejando até nós, até a nossa vista, como retalhos de uma casca de árvore. Por menos que aceitemos nos abaixar para recolher alguns pedaços. A casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca que a árvore, se me atrevo a dizer, se exprime. Em todo caso, apresenta-se a nós. Aparece de aparição, e não apenas de aparência. (Didi-Huberman, 2017)
Se o som é material, sua recepção nunca deixará de ser relacional, e inserida nos campos linguístico, cultural, social. Apelar por uma busca essencial do som, vazia de significado, pode fazer sentido dentro de uma cosmologia europeia, que percebe como humano apenas aquilo que é parecido a si, e como universal só aquilo que lhe diz respeito. Aos de-fora, no entanto, essas palavras são violentas, abrem cortes. Venho aberta, sim: as feridas abertas. Nascida no terceiro-mundo, o retardatário, escolho usar outras máquinas-conceitos.
Arrisco-me a seguir o artista sonoro chileno Gregorio Fontén, e vacilar:dançar entre a ontologia sonora e a escuta não-coclear, tecer uma escuta de tropeços, escorregões, erros (Fontén, 2019). Escuta errante-aberrante. Porque, assim como o filósofo Daniel Liberalino, acredito que o que não pode ser dito pode ser assoviado, ou batucado numa caixinha de fósforos ^[(D. Liberalino, comunicação pessoal, 30 de abril de 2021)]– e aí está sua potência: enquanto forma de expressão Outra, esfinge opaca; mas não há perguntas, tão somente uma sala de espelhos infinita.
Por isso proponho a escuta trans-coclear, que inclui em si tanto a linguagem – e o terreno das traduções, das redes de conexões e significados - quanto o âmbito desconhecido do que o som causa em nós, imenso buraco negro sem fundo, sem verdade – que é também o berço da linguagem.
Armo-me dos conceitos yanomami utupë e amoa-hi. No livro “A Queda do Céu”(2010), de Davi Kopenawa e Bruce Albert, lemos: “as imagens fotográficas são designadas pelo termo utupë, que significa ‘imagem corpórea, essência vital, forma mítica primordial’ e, também, ‘reflexo, sombra, eco, miniatura, réplica, reprodução, desenho’”(Kopenawa & Albert, 2010). Essa é uma tentativa de tradução; no entanto, não há qualquer conceito ocidental correspondente, pois a utupë é uma imagem que imagina, imagem que vê. É origem e cópia ao mesmo tempo, atual-virtual. É o que desce aos xamãs, que os faz dançar e cantar. E todos os cantos e todas as línguas são ecos, utupës, capturados da amoa-hi, árvore dos cantos, que é fonte inesgotável de sons. Assim descreve Kopenawa:
Os cantos dos xapiri são tão numerosos quanto as folhas de palmeira paa hana que coletamos para cobrir o teto de nossas casas, até mais do que todos os brancos reunidos. Por isso suas palavras são inesgotáveis. [...] Omama plantou essas árvores de cantos nos confins da floresta, onde a terra termina, onde estão fincados os pés do céu sustentado pelos espíritos tatu-canastra e os espíritos jabuti. [...] Seus troncos são cobertos de lábios que se movem sem parar, uns em cima dos outros. Dessas bocas inumeráveis saem sem parar cantos belíssimos, tão numerosos quanto as estrelas no peito do céu. [...] Todos os cantos dos espíritos provêm dessas árvores muito antigas. [...] Não se deve pensar que os xamãs cantam por conta própria, à toa. Eles reproduzem os cantos dos xapiri, que penetram um depois do outro em suas orelhas, como em microfones. Assim é. (idem)
Assim como as utupës, as gravuras apenas aparentam imobilidade, mas contém em si toda a potência virtual do que as gerou - e do que geram. Vibram e fazem vibrar as tramas de tempos sobrepostas. São fósseis de palavras esquecidas, colhidas na árvore amoa-hi, mesma árvore em que colho hoje minhas palavras.
Não há outra maneira de me aproximar do desconhecido senão oferecer-lhe um olhar perspectivista, em que não mais “o sujeito é um objeto insuficientemente analisado”, mas “o objeto é um sujeito incompletamente interpretado” (Viveiros de Castro, 2002). Não tenho a presunção arrogante de compreendê-lo, de colocá-lo sob o meu controle, senão de deixar que me atravesse e mude a direção do meu olhar, retumbe meus tímpanos em novas (e muito antigas) frequências.
Quero tentar traduzir esses atravessamentos, o que gravam em mim, com a plena convicção de que a tradução é sempre um movimento de satélite, que nunca atingirá o cerne. Gravita-o, porém, e recebe suas transmissões radiais.
Diante da condição de descontinuidade do outro, a relação tradutória não pode ser entendida simplesmente como via de acesso. Nem como via, nem como acesso. Antes, a tradução é a ocasião de um esforço relacional, é o acontecer de uma poiesis da relação com o outro, que, como tal, é sempre, em alguma medida, transformadora do outro e do eu: do outro apartado, recortado, transformado, assinado; e do eu, que ao apartar, recortar, transformar e assinar o outro, opera, também, em si e para si, uma transformação de seus valores. […] Um gesto que transforma o outro para mantê-lo como força de ressignificação de nós mesmos – para manter o outro em epígrafe. (Cardozo, 2013 apud Simões, 2018)
Ao que o tradutor e pesquisador Hugo Simões, em sua investigação de traduções entre genocídios e fins de mundo - de Paul Celan aos ameríndios, acrescenta:
O tradutor é o que não esteve lá (na origem) nem nunca estará lá (no destino). É o que tem de assumir o risco de perder o corpo próprio e de ganhar o corpo possuído. Só assim posso traduzir sem ser índio ou judeu, sem ter vivido seus passados. Qualquer ato de tradução é uma relação com um mundo que não partilho, a premissa da tradução é a ausência de identificação entre as partes. "Só me interessa o que não é meu", essa é a lei do mundo e é a lei da tradução.(Simões, 2018)
Faço-me então eu de esfinge, e coloco questões às testemunhas mudas da humanidade pré-histórica, dedico-lhes canções, em uma transluciferação haroldo-de-camposiana. Toda tradução é a rememoração do novo, ou, em termos deleuzianos: “uma língua estrangeira não é escavada na própria língua sem que toda a linguagem por seu turno sofra uma reviravolta, seja levada a um limite, a um fora ou um avesso que consiste em visões e audições que já não pertencem a língua alguma.”(Deleuze, 1997).
Nomadologia
26 – 28.10.2022
Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em nome de um aparelho unitário de Estado, pelo menos possível, inclusive quando se falava sobre nômades. O que falta é uma Nomadologia, o contrário de uma história.
Deleuze & Guattari
Fui ao Vale do Côa acompanhada de Victor Negri, artista multimedia, que ficou responsável pela câmera e também pelo som direto dos meus cantos-ecos-poemas.
Chegamos na estação de Pocinhos no dia 26 de maio pela manhã, onde encontramos Pedro Pinto, assistente operacional do Museu do Côa, que nos levou a Ribeira de Piscos. Passaríamos a próxima noite em uma casa de apoio, localizada em uma parte alta da área de preservação, de onde se tinha uma vista privilegiada do vale. Ficaríamos sozinhos, sem rede telefônica, longe de qualquer outra casa habitada. Antes de nos deixar, Pedro fez uma pequena ronda conosco pelos trilhos e gravuras, e deixava claro alguns cuidados necessários.
Principalmente, era preciso evitar estar em silêncio completo no meio do vale durante a noite, para que não houvesse algum encontro inesperado com uma mãe javali e seus filhotes. Dizia isso apontando para alguns troncos e galhos quebrados: se tentássemos trepar em alguma árvore para fugir, a mãe javali furiosa conseguiria sem dificuldades nos trazer ao chão.
Isso me trouxe memórias da infância, quando, em uma viagem escolar em Bonito, no Mato Grosso do Sul, começamos a ouvir um barulho intenso que se assemelhava a ossos quebrando. Era um grupo numeroso de queixadas que se aproximava, e que logo cercou o grupo de vinte crianças e o guia. O som era produzido por suas mandíbulas a bater, som percussivo de dentes, e era feito em tom ameaçador. Dos queixadas, até as onças tinham medo, disse-nos o guia, e alertou-nos que não podíamos encará-los nos olhos. Fiquei abaixada, olhando para a terra batida, paralisada, assim como todas as outras crianças, enquanto ouvia, aos poucos, o som amedrontador se afastar, som que só tenho registrado na memória, o que o torna ainda mais assustador.
Capturar sons é habitá-los, deixar que adentrem, atravessem, colidam conosco. Como diz Maile Colbert (2022), não se trata de tentar mostrá-los “como são”, ou de inventar janelas para um espaço-tempo específico, mas sim de colocá-los em um palco, em que se mostrarão outros, a partir de nosso recorte. Por mais que tentemos não interferir no que gravamos, e buscar naturalidade, tudo é artificial neste processo. Há decisões de equipamentos, de onde posicioná-los, quando começar a gravar e quando parar; e, nestas decisões, há nossa subjetividade, nosso corpo, que não pode ser apagado.
O silêncio está sempre repleto de nós, único em cada um, com nossas memórias, nossas palavras, nossa forma de escutar. Capturar sons talvez seja uma tentativa de compartilhar um pouco do nosso silêncio particular, torná-lo audível. Encapsular uma percepção singular do tempo. Os documentários serão sempre autorais, ainda que informados pelo exterior, por informações factuais.
Enquanto o carro de Pedro se afastava, encaminhávamo-nos para a beira do rio. As gravuras milenares eram agora os únicos resquícios de humanidade cercanos, com quem passaríamos largo tempo. Largo, porque o tempo se dilatava, porque abrir cartas pré-históricas é abrir rombos no tempo capitalista, em um movimento desaceleracionista.
Diante de um imenso auroque, emiti meus primeiros sons dirigidos à outra margem do rio, onde ecoavam. Victor estava a uns 15m de distância, com o gravador Zoom F6 e um par stereo de microfones em formato XY.
Já ali havia uma forte vontade de devir-pássaro, resultado do encanto que as aves fozcoenses me causaram, seus cantos novos para mim, cujos autores eu podia apenas imaginar, desconhecia os corpos. Eram corpos abstratos, escondidos detrás de incontáveis folhas.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/2m2yswu8az/desktop.mp4?locale=pt](Primeiras experimentações vocais)
Minha voz à distância também se vestia destas folhagens, se vestia do vale. “Se nos candidatarmos a responder o xapiri, as imagens do pássaro yõrixiama a e da árvore com cantos reã hi chega até nós rapidamente. Eles nos emprestam sua garganta e fortalecem nossa língua”, diz Davi Kopenawa na minha cabeça (Kopenawa & Albert, 2010) .
Após algumas horas a recolher sons destes pássaros, de alguns peixes a saltar na água, imensas moscas, esparsas rãs, começou a entardecer, e a voz de Pedro a ecoar na memória, que nos fez iniciar o caminho de volta à casa.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/6e1cwnnep/desktop.mp4?locale=pt](Peixes em Ribeira de Piscos)
Sentei-me então em um ponto seguro no fim da escada, de onde poderia apreciar o côro da tarde sem preocupações, a alguns poucos metros de nosso teto.
O ecossistema sonoro se transformava junto do céu. Era noite de lua nova, e as vocalizações dos bichos pareciam ecoar o brilho das estrelas cadentes.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/slsjtqe2e/desktop.mp4?locale=pt](Pássaros e respiração no entardecer em Ribeira de Piscos)
Às 5h30 do dia 27, estava eu já desperta, com minha lanterna de cabeça, o gravador e os microfones, à porta de casa. O silêncio era tanto que parecia conseguir ouvir movimentos mínimos a largas distâncias, e a minha respiração tornou-se ensurdecedora.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/279sof1xtb/desktop.mp4?locale=pt](Madrugada em Ribeira de Piscos)
Estava ainda muito escuro, quase só grilos a cantar. Mas lá no fundo, bem no fundo, ouvi-o se aproximar. O som foi crescendo aos poucos, até que já não havia dúvidas, a família de javalis estava por perto, a fazer seu passeio noturno. Minha respiração ficou mais alta do que o som amedrontador, e num salto estava outra vez dentro da casa, ofegante, e dizia ao Victor: “ouvi, ouvi um javali! Ali, ali ouvi”, sem perceber que cantava um poema.
Uns minutos depois me acalmei e tomei coragem para sair outra vez. Do fim da montanha começava a surgir um sinal de claridade, que despertou o vale. O côro da manhã parecia gritar: “estamos vivos, mais um dia!”. Eu também celebrava, ao mesmo tempo que tentava documentar uma parte deste ritual.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/fcquvb0h8/desktop.mp4?locale=pt](Côro da Manhã - Ribeira de Piscos)
Logo depois eu subiria em uma montanha, de onde ouviria ecos vindos de direções diversas, e cantaria, tentaria repetir estas palavras antigas, escolhidas a dedo, pelos animais da manhã. Como as primeiras palavras das araras, segundo Lourival Yanomami:
Naquela época a floresta ainda era nova e crua, cheirava muito bem. As pessoas animais se reuniram em grande número e alguns, que se tornaram araras, começaram a dizer:
"Nós que estamos aqui, nós vamos primeiro experimentar nossas palavras! Mas como vamos conversar? Não! Não devemos nos perguntar isso! Nós vamos falar como araras! Vamos nos fazer ouvir da seguinte forma: ããã ã ã ã ã !"
Os outros responderam: "Sim! Tente-as primeiro!
– As nossas palavras são bonitas também?
– Sim, elas são belas!
– Muito bem! Vamos todos conversar assim! ããã ã ã ã ã !"
Eles imediatamente proferiram exclamações de alegria: "hi! wẽ wẽ wẽ wẽooo!" E voaram para longe em bandos barulhentos para o topo das árvores onde eles estão se alimentando desde então. (Albert, 2016)
Resgato estes relatos não como meros contos cândidos, mas como quem leva radicalmente a sério outras epistemologias, como o multinaturalismo ameríndio. O que está em jogo são outras formas de se pensar a alteridade, o sujeito, o humano, outras formas de olhar – e – escutar! - a si e ao outro. Tal como explica Viveiros de Castro:
Deixemos claro: os animais e outros entes dotados de alma não são sujeitos porque são humanos, mas o contrário — eles são humanos porque são sujeitos. Isto significa dizer que a Cultura é a natureza do Sujeito; ela é a forma pela qual todo agente experimenta sua própria natureza. O ‘animismo’ indígena não é uma projeção figurada das qualidades humanas substantivas sobre os não-humanos; o que ele exprime é uma equivalência real entre as relações que humanos e não-humanos mantêm consigo mesmos: os lobos vêem os lobos como os humanos vêem os humanos — como humanos. O homem pode bem ser, como sabemos, um 'lobo para o homem'; mas, em outro sentido, o lobo é um homem para o lobo. Pois se, como sugeri, a condição comum aos humanos e animais é a humanidade, não a animalidade, é porque ‘humanidade’ é o nome da forma geral do Sujeito. (Viveiros de Castro, 2004)
Victor dessa vez gravaria minha voz na parte debaixo do vale, debaixo das árvores. Minha voz refletida no riacho, recortada pelo espaço e também recortando-o. As aves me responderiam, às vezes curiosas, às vezes furiosas. Fizemos alguns videos, e, pouco depois, ao final da manhã, Pedro apareceu para nos levar a Penascosa.
Lá estaríamos menos isolados, e os momentos silenciosos seriam mais raros. Naquele dia houve muitas visitas guiadas, e nós nos afastamos um pouco em direção ao rio, para captar os sons turbulentos da água.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/15uu8qd4sj/desktop.mp4?locale=pt](Rio Côa)
Fizemos também mais alguns registros em video. Fazia muito calor, e os outros animais também pareciam poupar energia. À noite, quando arrefeceu, em meio a um poderoso coaxar de rãs, surpreendeu-nos um grupo que veio para uma visita noturna.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/10sftwhmr4/desktop.mp4?locale=pt](Rãs em Penascosa)
O guia convidou-nos a participar, e nós, gratos, aceitamos, e pedimos autorização para gravar.
À noite, à luz de lanternas – ou de fogo -, as gravuras tomam vida. Quando pela manhã temos de nos esforçar para perseguir um risco e fazer dele um corpo, no escuro os corpos ardem, nus, explícitos. A potência cinematográfica das gravuras em seus intricados movimentos sobrepostos, que já na luz do dia se apresentava, à noite convidava-nos a dançar em mágicos saltos. Diante do painel imenso, a algazarra das rãs era amplificada, como se estivessem dentro da pedra, como se fossem elas sua expressão sonora, a vocalização das gravuras.
Sem energia elétrica, o sono vem depressa, e também o despertar. As vozes dos primeiros raios de sol eram outras das de Ribeira de Piscos. Estavam também um pouco mais distantes, por ser um local mais habitado de gente. Subi em um monte, em frente a algumas gravuras, e Victor posicionou o gravador embaixo, à beira da água, apontado para outro painel de xisto que estava na outra margem.
De cima, eu ouvia três ecos, e gritava-cantava a palavra “agora”, que se refazia em muitos outros agoras, e então me lembrava de Maile Colbert se perguntando: “quando o som é?”(Colbert, 2022). Já no ponto em que Victor estava, eram outros os ecos, outros os tempos dos agoras.
Depois trocamos de lugar, eu fiquei embaixo e Victor em cima do monte. Enquanto improvisava com as reverberações da minha voz, uma rã começou a dialogar comigo, e minha voz se tornava cada vez mais um coaxar, que fazia vibrar partes desconhecidas do meu corpo. Nunca mais pude repetir o que se deu nesse momento, reencontrar este lugar. Ele era, afinal, aquele lugar, com aquela rã.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/15gt4vejy3/desktop.mp4?locale=pt](Devir Rã)
Pouco antes de nossa estadia no vale terminar, enquanto eu imóvel capturava alguns últimos sons, comecei a ouvir, ao longe, sons de sinos. As cabras apareceram numerosas, tocando os sinos com seu caminhar, com seu roçar na grama. Som de instrumento confeccionado por nós, mas apropriado pela cabra. Som da cabra através do sino, misturado aos sons que faziam com as bocas, vocalizando ou mastigando. A gravação segue o percurso inteiro, desde os primeiros sons distantes, sua aproximação, e seu reafastamento.
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/1ns98udiyg/desktop.mp4?locale=pt](Cabras em Penascosa)
Depois de nos despedirmos das cabras, despedimo-nos do vale. Pedro trouxe-nos de volta a Pocinhos, onde apanhamos o comboio para voltar ao Porto. Nos registros em audio e video, os elementos constituintes da instalação apresentada um ano depois no Museu do Côa.
Átri(t)o
Átrio: 1. Espaço compreendido entre a porta da rua e a escada, ou as portas que dão ingresso ao interior de uma casa ou edifício. 2. Cada uma das duas cavidades superiores do coração, localizadas acima dos ventrículos (ex.: átrio direito; átrio esquerdo). Do latim atrium, que significa preto.^["átrio", em Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/átrio.]
Atrito: 1. Fricção de dois corpos que passam um pelo outro. 2. Resistência que a fricção de dois corpos ocasiona. 3. Dificuldade, resistência ou oposição que resulta de divergência de maneiras de ser, de agir ou de pensar. Do latim attritus, ato de esfregar ou friccionar. ^["atrito", em Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/atrito.]
A partir de uma tentativa de tradução das gravuras do Côa e de seu entorno, desenvolvi uma instalação sonora em seis canais, peças vocais para fones de ouvido abertos, três vídeos (e um tríptico) e uma escultura cinética, que em conjunto – e fricção- formam Átri(t)o.
O elemento-chave primeiro que abriu esse pátio foi o encantamento com as sobreposições e repetições presentes nas gravuras. Um mesmo traço que é o dorso de um auroque, também se torna, de repente, a cabeça de uma cabra. Os animais uns sobre os outros, uns nos outros, constituem uma espécie de criptografia, linguagem cifrada dos atritos. Entre cada camada, distâncias de talvez centenas de anos – mas dificilmente saberemos ao certo, tão intrincadas em que estão. Auroques, cabras, cervos e cavalos, quatro cromos repetidos ad infinitum, como pedras preciosas, como saberes fundamentais. Há outros, espalhados, inclusive uma rara figura humana, mas estes quatro são a grande maioria, e não só no Côa, mas por toda a área que hoje é o continente europeu.
Estão ainda emaranhados nestes profundos nós somente em alguns painéis de xisto específicos, enquanto há muitos outros vazios, sem qualquer vestígio de gravura, o que sugere que houve uma decisão pelo lugar, assim como por essa inextricabilidade. É como se, através da imensa sobreposição de perspectivas diversas de um mesmo objeto pudéssemos relar em uma ideia de todo, ultrapassar os segundos contínuos, a ordem linear de um gesto, e adentrar tempos elípticos, polirrítmicos, em que um passo vai e vem, sobe e desce, concomitantemente. Subo o calcanhar ao mesmo tempo em que o pouso no chão, levanto o pescoço para olhar para os pés, o polegar opositor guarda-oferece, tudo entreaberto, em fissuras espaço-temporais, em perpétuas ausências fantasmagóricas.
A presença e a ausência piscam, como vaga-lumes, uma dentro da outra.
Piscam ritmadas, abrindo átrios: “o coração/ de parede a parede/ se forma” (Celan, 1999).
Penso em ritmo a partir de Jarrod Fowler, percussionista e apicultor, que expande este conceito para além da esfera sonora, ou, melhor dizendo, expande o próprio som para além de si, supersônico, a borrar fronteiras; algo bastante presente e experimentado em seu disco de 2006, Translation as Rhythm (Errant Bodies), em que se debruça em textos filosóficos densos e se apropria deles sonora-percussivamente. O Tractatus Logico-Philosophicusde Wittgenstein, por exemplo, é transformado - traduzido- em ritmo; o texto de Joseph Kosuth Text and Context é alterado com palavras que condizem ao contexto sonoro, vocalizadas.
Diz Seth Kim-Cohen: “A dialética percussiva de Fowler vai além dos eventos localizados nos quais um material identificável impacta outro. Cada entidade já é o produto de processos diferenciais. O processo dialético nunca é tão simples quanto 1 + 1 = 2. Cada 1 também é implícita e inevitavelmente muitos. Portanto, a soma de 1 + 1 está mais próxima do infinito. A dialética de Fowler funciona em um nível mais alto de abstração, colidindo amplas categorias de prática para produzir reverberações significativas.”(Kim-Cohen, 2009).
Em outro momento, Fowler diria que os Mil Platôs, de Deleuze e Guattari, deveriam ser lidos como se escuta um disco, e que pertenceriam ao campo da arte sonora (idem). A percussão é tida como atrito de ideias, atrito de categorias, de conceitos.
Pego boleia neste caminhão conceitual e tento arriscar-me a traduzir os riscos milenares do Côa em polirritmias sonoras, audiovisuais e cinéticas. Atrito, logo existo, e esfrego o opaco, como lâmpada do gênio. “Ritmo é a distorção do tempo fabricado, (...) é feito de pequenos golpes no espaço”, escreve Gustavo Costa^[(G. Costa, comunicação pessoal, 14 de setembro de 2023)]. Golpes, sim, como aqueles que marcaram as pedras, e como os que marcaram os corpos, as mentes, dos que as gravaram. “Uma palavra, ainda, como esta, e os martelos/ vibram ao ar livre”, ecoa Celan (1999).
Porque é olhado, o olho olha. Porque há um convite para dançar, dança. Mas não com o intuito de representar nada, “Nenhuma arte é imitativa, não pode ser imitativa ou figurativa: suponhamos que um pintor "represente" um pássaro; de fato, é um devir-pássaro que só pode acontecer à medida que o próprio pássaro esteja em vias de devir outra coisa, pura linha e pura cor.” (Deleuze & Guattari, 1997).
O único que as gravuras podem representar é a fricção entre seus autores e os outros agentes em seu entorno, é a ação transformativa do outro em si, um tornar-se inacabado, inacabável. Em outras palavras, “As criações são como linhas abstratas mutantes que se livraram da incumbência de representar um mundo, precisamente porque elas agenciam um novo tipo de realidade que a história só pode recuperar ou recolocar nos sistemas pontuais” (idem).
Estar frente a frente com estas imagens cavadas nas pedras é ser testemunha de testemunhos. Testemunhar não só no sentido de ver, mas no sentido gagnebiniano de ser aquele que não vai embora, que não vira as costas.
É desta solitude essencial do testemunho que eu gostaria de ter falado. Não é uma solitude como qualquer outra – nem um segredo como qualquer outro. É a solitude e o segredo mesmos. Eles falam. Como Celan disse alhures, o poema, ele fala, secretamente, do segredo, através do segredo, e assim, de uma certa maneira, nele além dele: "Aber das Gedicht spricht ja ! Es bleibt seiner daten eingedenken, aber – es spricht": "Mas o poema, ele fala! Ele guarda suas datas na memória, mas enfim – ele fala". Ele fala ao outro se calando, calando-lhe algo. Ao se calar, ao guardar o silêncio, ele ainda se endereça. Este limite interno a todo testemunho, o poema também o diz. Ele o testemunha mesmo ao dizer "ninguém testemunha pela testemunha".(Derrida, 2004 apud Simões, 2018)
Na instalação multimídia Átri(t)o todos os objetos são testemunhos rítmicos – e portanto sonoros – ainda que percebidos como de outra ordem, de outras categorias.
Dispõem-se no espaço como espécie de halls de entrada, pontos entre a rua e a casa, como cacos de um espelho quebrado, souvenirs da tentativa de atravessá-lo.
O(a) leitor(a) notará uma obsessão pelo número três: três mídias (som, video, escultura), dois triângulos de colunas de som, na escultura três esferas, três videos, três camadas sonoras, e ainda aparecerão outros trios em detalhes menores de cada um dos objetos. São as três moiras tecendo o fio da vida, é o passado, o presente e o futuro em um mesmo tear, que existe agora, a terceira margem do rio. “O tempo é um só”, me disse o senhor do Arquivo do Porto, enquanto guardava minha mochila no armário, “e cria espaços diferentes para a ação”, ele continuaria, diante da minha ansiedade frente a uma aparente escassez de tempo para escrever este texto, para compartilhar esses tecidos.
Manipular o tempo para criar espaços talvez seja uma das vocações da arte sonora, e é o que vislumbro também neste fazer, interminável.
1. Ninho, Linha, Moinho
Traçar a linha ao invés de coordenadas
Deleuze & Guattari
Não se pode materializar o infinito, mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem
Andrei Tarkovski
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/8c6vvi2bm/desktop.mp4?locale=pt](Ninho)
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/6s2g8h4ch/desktop.mp4?locale=pt](Linha)
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/25bn4932n2/desktop.mp4?locale=pt](Moinho)
A palavra cinema, antes cinematógrafo, derivada do grego kinéo ("mover", pôr em movimento) + grapho ("desenho"), significa desenhar o movimento, gravar o movimento. Tarkovski iria além, e diria que cinema é esculpir o tempo, sendo o tempo, por sua vez, “um estado: a chama em que vive a salamandra da alma humana” (Tarkovski, 1998).
Como desenhar o tempo desdobrado? Suas camadas se sobrepondo, umas sobre as outras, mas também umas ao lado das outras, umas através das outras. As gravuras me olham com desprezo, que pergunta parva, não são elas próprias este desenho? A ilusão e alusão (d)(a)o infinito, na trança da história feita de tantas mechas desfeitas (Didi-Huberman, 2015), que seguem e seguirão se desfiando, repetindo-se e diferenciando-se sem fim.
Aqui, nestes três curtos videos e um tríptico, são também três os elementos principais, que se repetem em contextos diversos: as linhas, as mãos e o rio, em busca de uma terceira margem, aquela que é a deriva em si. São vídeos mudos, seus sons aqueles que habitam cada um no momento em que adentra as imagens. Mas, dentro da instalação, o som é feito também da instalação sonora, fora de campo, que, sem intenção sincrônica, acaba por esbarrar na imagem e criar momentos inesperados de sintonia e mais tempos sobrepostos.
Inspiro-me no filme Xapiri (2012), dirigido pelos artistas visuais Leandro Lima e Gisela Mota, pelo sociólogo Laymert Garcia dos Santos, pela pesquisadora da imagem Stella Senra e pelo antropólogo Bruce Albert; um documentário experimental cuja intenção é nos apresentar “duas diferentes noções de imagens: a dos yanomami e a nossa. Não se trata, pois, de explicar o xamanismo, seus métodos ou procedimentos, mas de tornar visível e sensível, para públicos de culturas diferentes, o modo segundo o qual os xamãs incorporam' os espíritos, como seus corpos e suas vozes se transformam tanto no contato com os espíritos quanto ao 'passar' de um a outro espírito.”(Lim, 2014).
Nessa tentativa de apresentar esteticamente um conceito mais abrangente de imagem - algo que poderia se aproximar da utupë - os cinco diretores acabam por explicitar os ecos e deformações no tempo através de repetições de frames e mudanças de velocidade, espécie de delay imagético, que acaba por facilitar a quem assiste um estado alterado de consciência. É como se, ao seguir um gesto se multiplicando em direções inumeráveis, pudéssemos habitar suas várias dimensões.
Não tenho a pretensão de com meus minúsculos cristais de tempo transformar radicalmente a percepção, ou de conseguir chegar perto de expressar a utupë, mas atenho-me sim à ideia de, a partir da manipulação – e escultura – do tempo e da ilusão das imagens em movimento, tornar mais palpável a volatilidade de nossa medida temporal corrente, evidenciar o quanto não é absoluta, e o quanto é, finalmente, chama. Urge quebrar a corrente ou, então, construir outros elos. Da linha fazer ninho, e depois moinho, de onde saem outras linhas. Ou do ninho apanhar linhas moídas. Caminhos.
Em um dos vídeos, as linhas da palma da mão se misturam às gravuras, ambas cicatrizes, marcas do atrito e do tempo. Uma mão aponta o risco, que foi feito também por outra mão. A pele se torna uma lente pela qual vemos, e da qual não podemos nos livrar. É a pele que nos separa do exterior, mas também é ela que permite o contato, porosa.
Já em outro, as mãos abrem três fios de cabelo branco sobre o rio, três linhas dos tempo que se cruzam e se afastam, até se quebrarem. O rio continua a correr, incessante.
Em um terceiro, temos sobrepostas duas perspectivas do rio, seu ir e vir. Um encontro do rio consigo mesmo, passado e futuro atualizados em um presente ruidoso, que transborda.
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. No tríptico, um hino aos furos, às quebras, aos cortes. À ação decisiva das mãos, que interferem no mundo, ainda que com golpes no ar. É disso que se trata nosso fazer, ritmado: criar pequenos abismos, turbulências. Até a menor das pedras causa na água algum movimento. Até a menor das gotas corrói uma partícula da pedra.
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/z8bdpyxg6/desktop.mp4?locale=pt](Ninho, Linha, Moinho)
2. Ecoa
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/1wcxmi58x1/desktop.mp4?locale=pt](Ecoa)
O que se ouve nestas pequenas peças vocais são registros de improvisações vocais feitas durante os três dias da residência no Côa. O único processamento é um delay espacializado, que acrescento tão somente para aproximar as duas perspectivas contidas na gravação: a minha enquanto vocalista e a do Victor enquanto microfonista, e nesta aproximação criar uma terceira, feita dos encontros e desencontros. Por conta de nossa distância intencional, os ecos que ele ouvia eram distintos dos meus, criavam outros pulsos. Nestas faixas está portanto o atrito entre minha voz e sua captura, minha voz e a montanha, minha voz e as outras tantas vozes que lá estavam, e que dialogavam comigo. Às vezes minha voz está mais perto, noutras tão longe quanto as demais, misturada aos pássaros, aos insetos, às rãs.
Não sei quando minha voz é. Ela foi lá, no momento em que minhas pregas vocais vibraram, mas foi também quando atingiu a cápsula do microfone, os tímpanos dos outros animais, quando refletiu no xisto; e continua a ser quando reproduzida uma e mais outra vez. Ela é o tempo a criar espaços, a dizer sempre “agora”. Tento imaginar as vozes daqueles que fizeram as gravuras, com pregas vocais geneticamente iguais às nossas. Voz, essa tecnologia pré-histórica.
Quando me lês, ouves também minha voz? Imaginas – constróis imagens – dela? A voz que é de um corpo, que emerge de uma garganta ñe’e raity - ninho das palavras-alma em guarani (Rolnik, 2018)- , e está, portanto, "entre o orgânico e a organização, entre o corpo biológico e o corpo de linguagem (...)." (Vasse, 1974).
Sempre já "voz-sujeito, rica em intenções e significados, com sexo e gênero, classe e raça, com sotaque, situada e flexionada pelas intensidades das numerosas inscrições e suas performatividades, (...) sempre identificada (ainda que nem sempre identificável". (LaBelle, 2014). A voz que brota no chôro quando o cordão umbilical se corta, como subversão ao fechamento de si (Vasse, 1974); que é o que inaugura o Outro, mas vai ainda sempre em direção ao mesmo Outro, como "um míssil corpóreo que se desprende de sua fonte, emancipa-se, mas mantém-se, ainda, corporal." (Dolar, 2006).
Lanço-me no espaço não só para que ele me devolva quem sou, mas também para que me diga quem é. O espaço é outro corpo, com outros agentes, outros átrios e caixas de ressonância. Lanço palavras no espaço tal como as escrevo nessa página em branco; elas te atingem, passam através de ti e se transformam no percurso, a partir das tuas referências, das tuas memórias, dos teus preconceitos, dos teus desejos. Digo página em branco como se existisse, como se espaços não fossem sempre ecossistemas, imensas redes, rizomas. Mesmo detrás dessa página, imensos códigos escondidos, e a maneira como foi programada informa a maneira como escrevo, ainda que inconscientemente.
Linha, ninho, caminho; Ninho, linha, moinho. Afundo, não há fundo.
Como ressoa minha voz no teu corpo? Como ressoam estas palavras ditas com a tua voz? O que é este terceiro corpo, feito de nós? Será também a linguagem essa espécie de espaço onde nos lançamos?
As vozes gravadas são ouvidas em fones de ouvido abertos, que constituem outro espaço dentro do espaço, espaço íntimo entreaberto. À frente, a janela, enorme, por onde o vale e o rio invadem.
Peço permissão para entrar, falar perto – ainda que longe- , de maneira epistolar, habitar as cavidades dos ouvidos, e me misturar aos sons que giram do lado de fora e do lado de dentro.
3. O Pio da Pedra
!educastAudio[https://educast.fccn.pt/vod/clips/28fvznzye3/desktop.mp4?locale=pt](Pio da Pedra)
São dois triângulos de colunas: um mais fechado, mais próximo da escultura, e outro invertido, que contém em si o menor, e que determina um espaço específico dentro da sala.
No triângulo menor, sons capturados na pedreira do Poio por Rui Campos entre 2014 e 2015 (Campos, 2017), que editei e processei criando três camadas: uma esticada, na qual tons e harmônicos se sobressaltam; outra contraída, em que os golpes antes espaçados se tornam quase um farfalhar, um reco-reco; e outra com a velocidade em que foram gravados. Os sons pulam de uma coluna à outra e criam um pequeno ecossistema feito de um único instrumento, o xisto lascado.
Já no triângulo mais aberto, há algumas das gravações de campo que fiz durante a residência de três dias no vale, cujo critério de seleção foi a busca por sons em que ideias rítmicas e percussivas se fizessem mais proeminentes. O ritmo está presente em todo e qualquer som, poderias me dizer com toda razão, mas nestes ele se faz mais apreensível, em seus ciclos, repetições, arranhões. Há sons de pássaros, de rãs, do rio, de peixes a saltar, de cabras e seus sinos. Eles caminham pela sala, passam por nós, em uma soundwalk do avesso. Os sons não esperam passivamente por nós. Eles são a própria errância, o próprio movimento.
Geofonia, biofonia e antropofonia intricam-se de tal maneira que é impossível separá-las. Há o vento no canto dos pássaros, há um coaxar nas nossas palavras. Nos nossos tambores, o rio, o mar. O peixe quando pula percute a água, a água percute a pedra quando corre, a cabra toca o sino, o pássaro responde ao tocar das cabras, a rã responde ao pássaro e à minha voz. A pedra pia, sacrificada.
É um diálogo que volta, que continua, e agora os sons das máquinas informam também os sons dos não-humanos, às vezes de forma violenta, outras vezes só como mais um emissor, a quem se pode responder.
Que consigamos fazer parte desta conversa sem que ela se torne um monólogo, abertos à penetração e à colisão dessas outras vozes que nunca conseguiremos de fato entender, mas que se expressam, apresentam-se a nós; vozes às quais devemos as nossas.
4. AGO(U)R(O)(A)
Eis a carta dos céus:
as distâncias vivas
indicam apenas
roteiros
os astros não se interligam
e a distância maior
é olhar apenas.
A estrela
vôo e luz somente
sempre nasce agora:
desconhece as irmãs
e é sem espelho.
Eis a carta dos céus: tudo
indeterminado e imprevisto
cria um amor fluente
e sempre vivo.
Eis a carta dos céus: tudo
se move.
Orides Fontela
A escultura cinética é composta por um disco de pedra de xisto em uma estrutura de ferro. Nela, roldanas de madeira conectam-se a três esferas que rodam em velocidades diferentes, no entanto interdependentes: o movimento de todo mecanismo é gerado por um único motor. Uma das esferas, a mais lenta e mais distante do centro, é conectada a um riscador de ferro, que grava a pedra de xisto.
Inspirada tanto em mecanismos de relógios como em orrerys (modelos mecânicos de sistema solar), é uma peça que investiga a polirritmia silenciosa presente no Vale do Côa, em suas múltiplas temporalidades coexistentes. Suas três velocidades são baseadas no atrito entre as idades dos painéis de xisto, das gravuras e dos seres humanos, três escalas temporais muito distintas, e no entanto contemporâneas. É no encontro e desencontro entre os diferentes elementos humanos e não humanos, em suas pausas e atritos, que as gravuras foram feitas ao longo de milhares de anos, e observá-las hoje é adentrar essa polirritmia, e também fazer parte dela, afetá-la.
A pedra de xisto tem o mesmo diâmetro de um LP, e remete-nos à gravação sonora. Em discos encapsulamos o tempo, criamos âmbares sonoros, assim como acontece com as gravuras. Traçamos outras linhas de vida, que tornam ainda mais desfiada a corda da história.
A ideia da escultura surgiu durante a residência de três dias no vale, na qual encontrei em meio às gravuras pré-históricas uma gravura do século XIX que representava um relógio a marcar para sempre a mesma hora. De repente todas as gravuras tornaram-se para mim relógios a badalar em diferentes horas, em diferentes ritmos, a dizer para sempre “agora”, a dizer para sempre “agouro”.
“[...] o agora encontra o outrora num relâmpago, para formar uma constelação”, diz Benjamin (Didi-Huberman, 2015). O que seria a constelação senão um mapa que traçamos entre pontos que chegam neste instante aos nossos olhos, mas que entre si carregam distâncias espaço-temporais imensas? A origem de alguns pontos quiçá nem exista mais, só seu rasto luminoso. A constelação é um desenho que parece estagnado, mas que diz respeito a uma dança incessante, mais antiga que nossos olhos, que os painéis de xisto; tão antiga quanto o grande Bang inaugural, que continuamos a repetir-inaugurar.
Na escultura, as esferas movem-se no entanto ao redor do vazio, sem sol. Sem centro, tudo é borda, aresta, superfície em dança e atrito. Apesar – e através- do espaço que há entre nós, nos afetamos, apesar – e através- do tempo que há entre nós.
O processo de confecção começou pelo estudo da estrutura e do funcionamento dos relógios analógicos, que, logo soube, eram muito similares aos dos modelos de sistema solar (orrerys).
A Máquina de Anticítera, mais antigo orrery descoberto até então, de aproximadamente 200 AEC, era inclusive também um calendário, em que coexistiam previsões das luas, dos eclipses, dos movimentos celestes e da passagem do ano. É tido como o primeiro relógio astronômico, assim como o primeiro computador analógico (“Antikythera Mechanism”, 2023).
A história se faz de improbabilidades, de saltos no escuro e mergulhos abissais. Aquilo que em um primeiro momento aparentava ser apenas uma lâmpada de bronze, era na verdade dezenas de engrenagens em um complexo sistema de cálculos, desenvolvido na Grécia Antiga e descoberto em um navio naufragado.
Até seu conhecimento, não se acreditava ser possível haver uma tecnologia tão avançada desta época, uma vez que os análogos descobertos datam de dezenas de séculos depois; e até hoje, mais de um século depois de sua descoberta, não há consenso sobre como seria seu real funcionamento, com contínuas tentativas de (re)construções de modelos.
Assombrou-me como estes mecanismos tão complexos, em que coexistem tantas diferentes progressões e velocidades, baseiam-se em uma só rotação central, fundadora. Seria o mesmo espanto de Marcus Tullius Cicero, no século 1 AEC, diante de uma invenção parecida de Archimedes, com registros apenas na literatura, e que dataria do século 3 AEC (idem). Nada de novo sob o sol, “apenas o mesmo ovo de sempre choca o mesmo novo”, escreve o Paulo Leminski.
Este meu horológio, porém, apesar de ser resultado de cálculos extensos, não é feito para calcular. Bem mais justo seria considerá-lo uma máquina inútil, como as esculturas cinéticas de Jean Tinguely, “máquinas que não fazem nada”, meta-máquinas, que não atuam na materialidade, mas habitam outros planos, o do inaudível, o do invisível. Escreveria também Tarkovski: “Ao contrário da produção científica, as obras de arte não perseguem nenhuma finalidade prática. A arte é uma metalinguagem com a ajuda da qual os homens tentam comunicar-se entre si, partilhar informações sobre si próprios e assimilar a experiência dos outros. Mais uma vez, isso nada tem a ver com vantagens práticas, mas com a concretização da ideia do amor, cujo significado encontra-se no sacrifício: a perfeita antítese do pragmatismo”(Tarkovski, 1998).
Antes que prever as coreografias dos planetas, ou devolver uma resposta para a nossa localização no tempo, AGO(U)R(O)(A) busca traduzir um minúsculo gesto da complexa trama de contemporaneidade e anacronismo que nos envolve, nós inclusos.
Sua base é o ferro, mesmo material do núcleo do planeta, que roda indiferente a nós. Na OCO, oficina de Pedro Guimarães, vi o ferro se deformar, curvar, derreter.
Tivemos também a ajuda de Nuno Costa para confeccionar os tubos.
Pedro foi quem tornou possível a materialização da peça, a partir de meus desenhos e dos meus primeiros cálculos mecânicos que produziram apenas modelos ideais – e, portanto, irreais. “Na prática, a teoria é outra”, dizem por aí.
Na prática, as coisas tem peso, os materiais são muito frágeis, ou resistentes demais, não há força suficiente para movê-los, um milímetro a mais e tudo está fora do eixo. Foram muitos os obstáculos que fizeram da peça o que ela é. O real marca a ideia a ferro e a fogo, é a condição, afinal, para que nasça, a crueldade inerente em cada rebento.
Fiz os cálculos dos trens de engrenagens a partir de proporções aproximadas entre as idades do xisto (~400 milhões de anos), do ser humano (~300 mil anos) e das gravuras mais antigas (~20 mil anos). No primeiro desenho, um motor de 4RPM alimentaria 11 engrenagens, o satélite mais distante rodaria a 0,004 RPM após uma redução de 1000, o segundo rodaria nos 4RPM sem alterações, e o último rodaria ao redor deste, como uma lua, a 60RPM, a partir do atrito com uma engrenagem fixa, no centro. A quantidade de engrenagens também teve de ser calculada de forma a que fosse possível manter o eixo central.
As rodas foram desenhadas na ferramenta online Gear Generator, criada por Abel Vincze em 2014 e aberta para uso de todos.
A partir dela, exportei os ficheiros das rodas independentes que foram depois acessados por Pedro no software SketchUp, onde ele confeccionou um modelo em 3D mais próximo do real.
Depois os ficheiros foram importados para a CNC. Por conta de limites da CNC e do próprio material que escolhemos (compensado de madeira), seria impossível confeccionar algumas das engrenagens que planejei, uma vez que eram muito pequenas para a quantidade de dentes necessária. Alguns cálculos tiveram que ser modificados, e foi necessário algum desapego à primeira proporção que idealizei. Na versão final, ficamos com 13 engrenagens. A proporção que sofreu alterações foi a do satélite mais rápido, que representa as gravuras. Antes com uma velocidade 15x maior que a de seu centro, terminou por ficar apenas 7x mais rápido.
Outro problema foi o primeiro motor que utilizamos, um motor de micro-ondas, de 4W, que era demasiadamente fraco para alimentar o sistema. Trocamos por um mais potente, de 28W, que, embora também não tivesse força o suficiente para suportar o sistema continuamente por muito tempo, foi o que acabou por ficar.
Por conta de sua fragilidade, de vez em quando parava e trocava o sentido da rotação, um “erro” que acabou por trazer mais uma camada para a escultura, em suas direções não lineares. Imprevisível, de repente a pedra recomeçava a ser riscada cada vez a partir de um ponto diferente, sem origem.
A escultura ocupou o centro da sala, deste átrio. Espécie de coração, cujos batimentos não ouvimos, mas estão lá, tal como nas Plásticas Sonoras do músico, compositor, e escultor suiço-brasileiro Walter Smetak: instrumentos silenciosos cuja natureza relacional, segundo Marco Scarassatti, seria "dar caminhos para que o dispositivo seja apreendido por um sentido perceptivo e, a partir daí, deflagrar uma sistêmica poética que o formule em outro sentido perceptivo" (Scarassatti, 2015).
Na peça "A Quadratura do Círculo", escrita por Smetak no início da década de 70 e publicada recentemente (Smetak, 2019), estas esculturas seriam depois pensadas dentro do contexto performativo, em uma dança de cores e formas geométricas que conteriam em si ideias musicais, ainda que não perceptíveis aos ouvidos.
É curioso como, em um ensaio de mesmo nome escrito em 1969, o concretista Haroldo de Campos explorasse justamente as dificuldades de se traduzir a poesia chinesa por conta dos aspectos visuais do alfabeto chinês, indissociáveis de seus meros significados, e que demandavam, portanto, um pensamento imagético, uma reimaginação, para além de uma tradução (de Campos, 1969).
A expressão que nomeia os dois textos, e que é usada para designar aquilo que é impossível, vem de um problema matemático antigo, surgido na Grécia pré-socrática, cuja resolução só se deu no fim século XIX. Concluíram: não se pode desenhar um quadrado com a mesma área de um círculo, pois 𝝿 é um número transcendental (“Squaring the Circle”, 2023).
Transcendentais talvez sejam todas as traduções e expressões em qualquer linguagem, verbal, sonora, visual. Relembro aqui Hugo Simões, que em sua pesquisa aproxima o ato tradutório do xamânico (Simões, 2018).
AGO(U)R(O)(A) também é parte desta investida, a tentativa de transbordar para além de si suas polirritmias silenciosas, e riscar no círculo quadraturas impossíveis: gravar o que se cala, falar se calando.
Conclusão
Não há ato de criação que não seja trans-histórico, e que não pegue ao contrário, ou não passe por uma linha liberada
Deleuze & Guattari
porque eu, o mundo e a língua
somos um só
desentendimento
Herberto Helder
Esta tese não é sobre o Vale do Côa, ainda que tenha sido lá o ponto de partida de minhas reflexões e das obras que constituíram a instalação. Talvez seja antes uma meta-tese, que tenta falar sobre o falar sobre. Antes de tentar decifrar o outro, tentei investigar o que é olhar o outro, escutar o outro. Tentei dizer da busca pelo encontro, da tentativa de habitar o que há entre nós, as duradouras distâncias.
Na língua Diné, a expressão correspondente ao "Era uma vez" é ałkʼidąą, que, ao invés de se referir a algo preso em um ponto remoto do passado, contém a expressão K’i, que traduz-se por "plantar" (Skeets, 2020). A cada vez que contamos uma história, portanto, ela é reatualizada no agora, ressemeada. Em um exercício de radicalidade da memória (idem), quis cantar essa planta longínqua, sabendo que jamais iria encontrá-la.
Nesse processo, perdi coisas que havia encontrado, encontrei coisas que havia perdido. Colecionei pequenos cacos e, em ficções especulativas, criei mosaicos, contruí jarras que hoje guardam e derramam água.
Confeccionei pequenos estudos sobre o tempo e seus entrelaçamentos, sobre as utupës e seus intermináveis ecos, reflexos. Minúsculos furos na linearidade, mas, ainda assim, furos, aberturas para outras ideias de espaço-tempo.
Segui estas veredas certa de que a busca pelo encontro seria sempre uma busca pelo atrito. Todo contato causa lesões, e é delas que nasce o fogo. Muitas vezes a compreensão do outro nos escapa, mas ela não é imperativo para que reconheçamos sua existência, e suas radiantes e novas (para nós) linhas de fuga.
Nunca saberei o que é olhar com teus olhos, ouvir com teus ouvidos, mas ainda assim nossas presenças se afetam. Aqui, uma tentativa de transformar vivência (Erlebnis) em experiência (Erfahrung) compartilhável (Berenstein Jacques, 2012).
Minhas palavras não tem qualquer utilidade, são tão somente convites para que em meio a esse desentendimento fundamental façamos ainda alianças, ouvidos abertos, expandidos, para além do sonoro, trans-cocleares.
Que tentemos, ainda que seja impossível, traduzir, raspar o opaco e traçar desenhos de suas cascas. Derreter e dobrar o ferro, se for necessário, madrugar para ouvir o primeiro côro da manhã, imitá-lo, para então encontrar no próprio corpo lugares desconhecidos.
Que o som não musical do homem faça bloco com o devir-música do som, que eles se afrontem ou se atraquem, como dois lutadores que não podem mais derrotar um ao outro. (Deleuze & Guatarri, 1997)
E, que neste sempre duplo devir, o tempo volte a durar em suas multiplicidades e povoamentos, anticapitalista, desapossado de sua exploração em trabalhos precários. “É necessária uma revolução temporal, que gere um outro tempo, o tempo do outro, que não é um tempo do trabalho, uma revolução temporal que traga de volta para o tempo o seu aroma”(Han, 2016).
O Capital é muito mais brutal que Saturno. Insisto em escrever porque acredito em outras maneiras de compartilhar esses tempos sobrepostos, e encontro na poesia e no fazer artístico formas de resistência, de abrir rombos, de esculpir o tempo – um tempo em que possamos nos encontrar e desencontrar, dançar nossas polirritmias, demorados.
É verdade, a palavra, o som, não transformam nada materialmente, são, quando muito, máquinas inúteis de eterno e inacabado devir. Mas podem mudar algumas engrenagens mentais de lugar, alterar as rotações, as proporções, riscar outras conexões; e estas, sim, podem finalmente se concretizar em ações no real, ações que reguem o jardim dos espaços-tempos que existem entre nós.
A amoa-hi canta, ainda que não a saibamos escutar, ainda que pareça calada. Canta linhas multidirecionais, libertas dos pontos. Teias e teares de tensas cordas desfiadas onde nos prendemos e perdemos, armadilhas e resgates. Nunca estaremos à salvo.
Então cantemos, cantemos à deriva, cantemos a deriva.
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