O eremitismo (im)possível: uma viagem A/V em torno da Natureza e da tecnologia
Rodrigo Pereira,Projeto artístico do Mestrado em Artes e Tecnologias do Som, ano letivo 2022/24, realizado por Rodrigo Pereira e orientado por Bruno Pereira e Filipe Lopes.
Projeto artístico do Mestrado em Artes e Tecnologias do Som, ano letivo 2022/24, realizado por Rodrigo Pereira e orientado por Bruno Pereira e Filipe Lopes.
Resumo
O eremitismo (im)possível: uma viagem A/V em torno da Natureza e da tecnologia é um projeto de investigação artística que, a partir de uma experiência de viagem, cruza literatura, autoetnografia, sons e imagens, numa proposta rizomática que se constrói com base em tensões conceptuais e de interações e intersecções entre os vários elementos que a constituem.Inspirado pela obra seminal de Henry David Thoreau, Walden ou a Vida nos Bosques, o autor realizou uma viagem nos E.U.A. que tinha como destino o lago Walden, Massachusetts. Durante essa viagem foram recolhidas, imagens, sons e experiências que servem de matéria prima à reflexão e experimentação audiovisual que dá corpo a este projeto.Aplicando uma metodologia influenciada pela interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, são também evocados os conceitos de sinergia, sincretismo e sinestesia retrabalhados por Gene Youngblood em Expanded Cinema (1970), como fundamentação para a criação audiovisual (A/V).O trabalho criado dialoga com diferentes vertentes, conceptuais e abstratas. Integra na criação sonora e visual elementos “reais” e outros criados a partir de síntese eletrónica construída a partir de um sintetizador modular de som e imagem.Motivada sob a ideia que o espaço, o tempo e a forma como se expõe os objetos audiovisuais, são elementos fundamentais na sua conceção e transmissão, a criação de vídeo é pensada em formato expandido onde as relações entre som e imagem são exploradas a partir da sincronia, diacronia e disrupção, procurando promover uma experiência sensorial e poética. O corpo de texto deste trabalho concebe-se através de descrições subjetivas acerca das observações e reflexões do autor durante a viagem e das especificidades técnicas e tecnológicas da criação artística, complementando a produção do objeto vídeo com uma reflexão crítica sobre a forma como se constitui.
Palavras-ChaveInvestigação Artística; Criação Audiovisual; A/V; Transdisciplinaridade; Intermodalidade; Sinergia; Sincretismo; Cinema Sinestésico; Henry David Thoreau; Autoetnografia
Abstract
The (Im)possible Hermitism: an A/V Journey Around Nature and Technology is an artistic research project that, based on a travel experience, intertwines literature, autoethnography, sounds and images in a rhizomatic proposal. This project is built on conceptual tensions, interactions and intersections among its various constitutive elements.Inspired by Henry David Thoreau's seminal work Walden, or Life in the Woods, the author undertook a journey in the USA, with the destination being Walden Pond in Massachusetts. During this journey, images, sounds, and experiences were collected, serving as raw material for the audiovisual reflection and experimentation that form to this project.Applying a methodology influenced by interdisciplinarity and transdisciplinarity, the concepts of synergy, syncretism, and synesthesia reworked by Gene Youngblood in Expanded Cinema (1970) are also invoked as the foundation for audiovisual (A/V) creation.The work created dialogues with different conceptual and abstract aspects. It integrates into its sound and visual creation both "real" elements and others created from electronic synthesis, built from a modular sound and image synthesizer.Driven by the idea that space, time, and the way audiovisual objects are presented are fundamental elements in their conception and transmission, the video creation is designed in an expanded format where the relationships between sound and image are explored through synchrony, diachrony, and disruption. This approach seeks to promote a sensory and poetic experience.The body of this work transitions from subjective descriptions of what the author observed during the journey to the technical and technological specifics of artistic creation, complementing the production of the video object with a critical reflection on how it is constituted.
KeywordsArtistic Research; Audiovisual Creation; A/V; Transdisciplinarity; Intermodality; Synergy; Syncretism; Synesthetic Cinema; Henry David Thoreau; Autoethnography
INTRODUÇÃO
O eremitismo (im)possível: uma viagem A/V em torno da Natureza e da tecnologia é um projeto de investigação artística que, a partir de uma experiência de viagem, cruza medias e géneros e propõe uma obra audiovisual construída com base em tensões conceptuais e de interações e intersecções entre os vários elementos que a constituem.
O projeto desdobra-se/desconstrói-se em várias áreas: literatura, imagem e som; para criar uma obra artística criada a partir de experiências que testam as potências poéticas das relações das partes. Propõe uma forma horizontal em que as possibilidades expressivas, criativas e interpretativas são estimuladas por uma não-linearidade na fusão das técnicas, do tempo e da narrativa.
Este trabalho não se situa numa área/disciplina artística concreta. Sendo o processo criativo assente em práticas intermodais e transdisciplinares, o ónus da experiência artística será explorar as relações possíveis entre som, imagem e uma narrativa autoetnográfica criada a partir de uma viagem física e literária à obra de Henry David Thoreau, em específico, ao livro Walden ou a Vida nos Bosques publicado em 1854 pela primeira vez.
O início deste processo criativo iniciou-se em 2021 numa altura em que era para mim difícil perceber compatibilidades entre a tecnologia e a Natureza. Durante este processo, tenho vindo a redefinir, questionar e responder a esta questão através do pensamento, da literatura e da criação artística.
Este projeto é uma súmula de várias experiências que contribuíram para novas perspectivas sobre uma prática e um pensamento que não se encontram, nem se espera, concretizados.
Dissociar a minha vida pessoal do meu trabalho artístico parece-me uma tarefa impossível e, neste caso em específico, ainda mais. As referências apresentadas ao longo deste surgem por serem partes fundamentais deste processo. Exponho-as por considerar que a criação artística não existiria desta forma se não fosse altamente influenciada pelos pensamentos e conceitos que apresento. As referências servem assim para contextualizar o meu processo pessoal e criativo ao longo da sua evolução.
Estabeleço uma relação direta entre uma aparente tensão entre tecnologia e Natureza e preocupações mais concretas dentro da minha atividade artística que se centram nas seguintes questões:
- Como fazer coexistir diferentes experiências sensoriais numa experiência estética;
- Como explorar a dimensão poética da relação audiovisual;
Apesar de se desenvolverem em simultâneo, para melhor compreensão do todo, neste contexto, divido o projeto em dois principais eixos:
Literário – autoetnográfico
Motivado pela leitura do Walden ou a Vida nos Bosques, planeei e realizei uma travessia nos E.U.A., mais concretamente da Califórnia ao Lago Walden em Concord, Massachusetts. Durante este percurso, fui filmando distintos ambientes e situações.
Nas largas viagens, fui pensando acerca do eremitismo na atualidade a partir de uma perspetiva mais contemplativa e menos esotérica. Por esta altura, assaltava-me recorrentemente a vontade de viver de uma forma mais próxima da natureza. Lidei com a aparente contradição dos meus interesses: a busca por um tempo alargado e sem muita interação humana vs. a atração pela tecnologia e pela arte contemporânea. Ora motivado pelos sons e imagens "(não)orgânicos" da eletrónica, ora motivado pelas experiências contemplativas descritas por Thoreau. Esta aparente impossibilidade de equilíbrio entre o mundo tecnológico e o mundo natural é o tema que me debruço neste eixo, onde, em diálogo com Thoureau e com Walden ou a Vida nos Bosques, proponho-me, a partir de uma posição pessoal e subjetiva, a ultrapassar esta dualidade através da experiências que tensionem a tecnologia, a criação artística, a natureza, a criação de singularidade vs. a vida em sociedade.
Audiovisual (A/V)
A criação audiovisual tem feito parte do meu percurso de forma determinante. Enquanto potência criativa, as criações audiovisuais permitem-me trabalhar com as dimensões do tempo, do movimento, do som, da imagem e da palavra numa realidade comum e diversa.
Para este trabalho em específico, proponho relações entre som e vídeo como possível ensaio de relações entre pessoas e entre pessoas e as coisas, explorando em detalhe a sincronia e a reatividade, mas também outras dinâmicas menos comuns no diálogo entre os dois elementos. O trabalho criado dialoga assim com diferentes vertentes, conceptuais e abstratas, em que integra a criação sonora e visual a partir de elementos gravados,e outros criados a partir de síntese eletrónica. Assim sendo, a experiência sensorial, que almejo encontrar a partir da relação audiovisual com o universo concreto da dimensão conceptual e das imagens gravadas, poderá criar condições para perceber que a relação estética e subjetiva da comunicação artística contribui para alargar as pontes de intersecção.
That is, synaesthetic synergy does not tend toward greater complexity, but rather produces an effect that in physics is known as elegant simplicity. (Youngblood, 1970)
Youngblood é o autor responsável por juntar e retrabalhar os conceitos Synergy, Syncretism, Synaesthtetic Cinema - que se tornaram pilares conceptuais de todo o processo criativo.
Synergy, ou Sinergia, enquanto comportamento de um sistema não previsto pelo comportamento de nenhuma de suas partes.
Syncretism, ou sincretismo, enquanto combinação de muitas formas diferentes numa única forma.
Synaesthtetic Cinema, ou Cinema Sinestético, enquanto adaptação do termo sinestesia ao universo da criação audiovisual: “Synaesthetic cinema is a space-time continuum. It is neither subjective, objective, nor nonobjective, but rather all of these combined: that is to say, extra-objective. Synaesthetic and psychedelic mean approximately the same thing. Synaesthesis is the harmony of different or opposing impulses produced by a work of art.” (Youngblood, 1970)
Encaro estes três conceitos enquanto premissas éticas de pensamento e criação que foram fundamentais para iniciar processos artísticos que se construíssem a partir de bases plurais.
Nesse sentido, assim como uma obra audiovisual pode ser pensada como um objeto portátil, passível de ser visionado em diferentes contextos e plataformas, essa mesma obra pode ser reconduzida sob a ideia que o espaço, o tempo e a forma como se expõe os objetos audiovisuais, são elementos fundamentais na sua conceção e transmissão.
Relacionar o objeto audiovisual com o formato de exibição é assim a última parte deste trabalho que relaciona diretamente os conceitos de cinema expandido, site-specific, videoart, soundart, performance e instalação.
Mais do que desejar que a obra produzida se encerre numa determinada prática ou “linha” conceptual, pretendo aceitar múltiplas influências e sugerir uma obra multicéfala e sensitiva.
Intermodalidade e Transdisciplinaridade – uma possível trajetória
Tal como sugerido anteriormente, tendo a ver a indefinição de uma obra artística como uma possibilidade e não como um defeito ou lacuna.
Ao longo do meu percurso artístico tem sido recorrente relacionar diversos media, áreas artísticas e pensamento. Tal cruzamento tem-se revelado fundamental para dar resposta às minhas pulsões criativas junto da necessidade de construir uma linguagem artística progressivamente mais aberta, multissensorial e suscetível de diferentes interpretações.
Os filósofos Deleuze e Guatari são figuras centrais na construção do meu pensamento para pensar a arte e a vida. Em concreto, o conceito de Rizoma^[“Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bolbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz ou radícula podem ser rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente: é uma questão de saber se a botânica, em sua especificidade, não seria inteiramente rizomórfica. Até animais o são, sob sua forma matilha; ratos são rizomas. As tocas o são, com todas suas funções de habitat, de provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bolbos e tubérculos. Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor e o pior no rizoma: a batata e a grama, a erva daninha. Animal e planta, a grama é o capim-pé-de-galinha. Sentimos que não convenceremos ninguém se não enumerarmos certas características aproximativas do rizoma. (…) Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também preceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais.” (Deleuze & Guattari, 2011, p.13)] foi um motor para que a criação de objetos complexos, dotados de pensamento crítico, me permitam fazer mais relações entre mim e o exterior, criando naturalmente uma aproximação da relação estética com o corpo. I.e., partir para o trabalho com a noção de que um corpo “sem órgãos” ^[“Não existe amor que não seja um exercício de despersonalização sobre um corpo sem órgãos a ser formado; e é no ponto mais elevado desta despersonalização que alguém pode ser nomeado, recebe seu nome ou seu prenome, adquire a discernibilidade mais intensa na apreensão instantânea dos múltiplos que lhe pertencem e aos quais ele pertence.” (Deleuze & Guattari, 2011, p.49)] funciona através da integração de todos os seus constituintes num modelo cooperativo não-hierárquico.
O ónus da minha criação reside na proposta de juntar o pensamento e as sensações físicas numa experiência plural, em que será a partir desta relação que se cria o sentido ou o não-sentido da comunicação.
Sendo impossível definir uma influência principal no meu trabalho, a arte ocupa um espaço de experimentação de utopias, de infinitos impossíveis, que me ocupam o tempo de forma disruptiva, desvelando assim novas possibilidades e experiências da minha interação com a Natureza – em que está incluída a fauna, a flora, os humanos e as máquinas.
Partindo do princípio que o contexto influencia a comunicação, também as obras artísticas podem ser influenciadas na sua transmissibilidade pelo meio categórico onde estão inseridas. Ao longo da História da Arte, a categorização das disciplinas e das áreas artísticas foi-se alterando com o surgimento de novas práticas artísticas que cruzam diferentes técnicas e se apresentam cada vez mais híbridas e plurais. ^[ “Porque se torna banal e se inscreve, nos múltiplos aspectos da vida quotidiana, a arte parece então cada vez menos identificável enquanto tal. Além disso, os múltiplos vínculos mantidos com as novas tecnologias, com a apropriação crescente da ferramenta informática (...)abolem as fronteiras entre disciplinas. Estas interferências tornam por vezes difícil a especificação da actividade artística.” (Jimenez, 2021, p.223)]
Se por um lado temos artistas que se afirmam numa área específica e foram agentes da transformação e redefinição da própria área através de práticas que tencionaram os limites “do que pertence”; outros fugiram à catalogação e contaminaram o sistema da Arte com propostas que não são enquadráveis nos cânones estabelecidos.Ambas as perspetivas são válidas como contributo para o discurso sobre a Arte e sobre a forma como se insere na sociedade e na Natureza.
Um exemplo incontornável neste tema é Marcel Duchamp que em 1917, com a sua célebre obra “A fonte”, questionou de forma pioneira a definição e consequente função da arte.
De acordo com Gil & Godinho (2011), Duchamp permitiu-nos alargar o espectro interpretativo ao dar-nos a possibilidade de “Experimentamos assim as suas contradições. Os deslocamentos, as mudanças, inversões, o “a-sentido”, as reduções até à máxima economia, o paradoxal, o humor, o mesmo, os objectos desparecidos ou afastados, “as coisas”."
No seguimento do pensamento Duchampiano, John Cage, Nam June Paik, Joseph Beuyes afirmam-se como artistas cujas práticas disruptivas subvertem tanto tecnicamente quanto conceptualmente as tradições artísticas, contribuindo assim para o surgimento de novas áreas artísticas que acomodassem novas questões. As suas práticas envolveram diversos meios e se Cage é o mais significativo precursor da SoundArt^[“(...)starts his discussion of the subject in the fifties with examples by John Cage, Pierre Schaeffer and the group Ongaku, but these all operated from within the field of music. They had a desire to expand its repertoire to include noise, sound, silence and life, as well as indeterminacy. However, though Cage didn’t label his work as sound art, his famous ground breaking conceptual listening piece 4 ′33 ′′ (1952) has been so influential in the art world that one might call him the ‘grandfather’ of sound art.” (Collins & Escrivan Rincón, 2017, p.227)], Paik da VideoArt^[“Whereas paint has been used creatively for thousands of years, the rise and fall of video as an artistic material took place within only forty. The format, with its easily operable, inexpensive, reusable design, did not become available until the mid-1960s and thus is approaching its first half-century. The opportunity to make use of the new equipment was first explored by the so-called “father of video art” Korean-born Nam June Paik: in October of 1965, he travelled through New York City with a portable video camera (the Portapak) in a journey that kick-started an explosive revolution in art and music circles.” (Rogers, 2013, p.3)], Beuys afirma-se enquanto uma ponte fundamental entre a arte e a sociedade.^[Na medida em que Duchamp provoca o transtorno da linguagem da arte, consubstanciando-se como o mais notável hermeneuta da subversão artística, Beuys perturba o mundo da arte e dos seus poderes (e da estabilidade desses poderes) assumindo o papel do dissidente não só contra a linguagem da arte, mas contra a linguagem do poder e ainda mais inusitadamente contra o exercício desses poderes, transcendendo a critica hermenêutica da política de arte para fundar uma prática crítica de arte política.” (Júlio do Carmo Gomes in Beuys, 2011, p.42)] Com um trabalho profundamente crítico, Beuys torna-se relevante para uma democratização tanto do acesso à arte como do acesso à criação artística enquanto motor de desenvolvimento social e individual.
“Se a arte não inventa, se a sua compreensão não renova a ideia de arte, certamente tam-pouco o fará a pintura ou a escultura. (...) Necessitamos de outro tipo de “quadros” e “esculturas”. Necessitamos de relações mais profundas com as forças do indivíduo e da sociedade. Vejo que há uma necessidade inevitável de acção.” (Beuys, 2011, p.27)
Tal como sugere o filósofo Theodor Adorno, importante figura da Escola de Frankfurt e do Pensamento Crítico, o objetivo da produção artística não será a pacificação das tensões entre os seus elementos, será a extensão das tensões. A provocação de uma explosão que fragmente ao mesmo tempo que une.
“A sensibilidade do belo relativamente ao polido, à consideração empenhada de que a arte, ao longo da sua história, se comprometeu com mentiras, transfere-se para o momento da resultante, que a arte tão pouco pode dispensar como as tensões das quais tal momento provém. É possível prever a perspetiva de uma recusa da arte em nome da arte.” (Adorno, 1993, p.68)
Assim sendo, o Belo é uma característica que já não sobrevive isolada na arte contemporânea.
“The Beautiful and the True in art do not exist; what interests me is the intensity of a personality transposed directly, clearly into the work; the man and his vitality; the angle from which he regards the elements and in what manner he knows how to gather sensation, emotion, into a lacework of words and sentiment.” (Tzara, (1968) in Zurbrugg 1993, p.485)
O pensamento conceptual é indissociável da prática artística dos artistas mencionados. As práticas artísticas e a forma como operacionalizam os diversos meios e ferramentas é resultado desse trabalho crítico.
O Pós-modernismo, corrente onde são inseridos os artistas mencionados, surgiu como uma resposta às mudanças culturais e sociais das décadas de 1960 e 1970.
O capitalismo tem tido influência na forma como a arte se desenvolve e insere socialmente. Nesse sentido, vários autores alertam para as relações da arte com a sociedade enquanto constrangimento e desvirtuamento do propósito de criação artística.
Guy Debord foi um destes autores, precursor e pensador da Internacional Situacionista, em Sociedade do Espectáculo (Debord, 2012) destaca a importância central do espetáculo na dominação capitalista e na alienação dos indivíduos. Segundo Debord, as relações sociais são mediadas e distorcidas por imagens e representações, em vez de se basearem em interações autênticas e genuínas. Esta sociedade do espetáculo promove uma cultura consumista que nos afasta de nós mesmos, dos outros e do mundo que nos rodeia. O autor argumenta que o espetáculo não é apenas uma forma de entretenimento, mas uma força de dominação que obscurece as verdadeiras relações sociais e dificulta a autenticidade e a comunicação genuína entre as pessoas.
Este pensamento pode ser visto também sob um prisma de crítica à própria arte e às diversas instrumentalizações que distorcem o propósito da criação artística à luz das teorias que fui citando. Influenciado pelo Marxismo^[“É claro que, não obstante o que dissemos, não há que calar quem fale, a respeito de Guy Debord, de marxismo, desde que se ressalve, desde logo, o seu carácter heterodoxo." (Carvalho, 2018, p. 196)], a linha de pensamento de Debord foi actualizada por autores como o filósofo esloveno Slavoj Žižek que levanta novas problemáticas na relação da arte com o Capitalismo e ensaia como o Pós-modernismo pode ter sido capturado por estas dinâmicas:
“A aparente “radicalidade” de algumas tendências pós-modernas não devem nos ludibriar nesse aspecto: essa “radicalidade” – muitas vezes espetacular – está aí para nos fascinar com uma isca enganadora, e, assim, nos cegar para a fundamental ausência de pensamento propriamente dito. Talvez isso nos dê uma definição possível de arte pós-moderna em oposição à arte moderna: no pós-modernismo, o excesso transgressor perde seu valor de choque e é totalmente integrado no mercado de arte estabelecido.” (Žižek, 2022, p.112)
Contemporaneamente, podemos afirmar que toda a arte é política se considerarmos que a arte se inscreve no domínio público e, como tal, estabelece uma relação direta ou indireta com a sociedade. Partindo deste princípio, o prisma pelo qual se analisa uma obra artística, altera o conteúdo da reflexão. Essa característica não é necessariamente negativa porque revela a pluralidade existente num determinado trabalho. Afirma o fragmento enquanto possibilidade poética, sendo fragmento um conceito que ajuda a entender práticas que se constroem a partir de diversas influências e materialidades.
O surgimento das práticas multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares é sintomático desta evolução e evidenciam o hibridismo das técnicas utilizadas na arte contemporânea, ampliando o horizonte expressivo e criativo ao garantir diálogos inesperados entre diferentes realidades.
A intermodalidade e a transdisciplinaridade são importantes no contexto deste trabalho por nortearem a metodologia de investigação e criação artística apresentada e serem importantes conceitos para a reflexão sobre o mesmo.
O pluralismo generalista do multi tem os seus pontos importantes, mas o relacional do inter abre portas mais amplas a estudos culturais processuais, ao permitir um maior espectro de conexões diversificadas, além da mera adição de elementos. Isto acentua o inter como uma forma de navegar para fora das armadilhas do estruturalismo e das teorias de sistemas, aonde as relações dinâmicas tendem a ser petrificadas em totalidades relativamente fechadas. (Fornäs, 2002 in Rangel, 2014, p.56)
A evolução das tecnologias eletrónicas, em especial do vídeo, cada vez mais acessíveis, são responsáveis pela abertura de um vasto campo de experimentação criativa. Concretamente sobre o som e a imagem, por serem, à parte da autoetnografia, as instâncias a que me dedico nesta criação, estas são uma presença transversal a diferentes práticas artísticas.
Na arte, estas tecnologias têm vindo a ser explorados sobre diversas perspectivas, tanto em áreas mais consagradas como o cinema, a música ou o teatro, como em exercícios e objetos artísticos indefinidos que, por isso mesmo, encontraram novos lugares.
“…videoart did not operate in creative isolation. Video could readily reproduce sound, which enabled those with no musical training to become composers and sound artists as well as visual artists. It is here, within the interdisciplinary possibilities of the medium, that the key to understanding video´s history lies.(...)video offered to the world of twentieth-century music and art pratices a new and sycretic way of voicing ideas." (Rogers, 2013, pp.38-43)
A taxonomia apresentada na tabela anterior não serve para engavetar obras de arte perdidas na impossibilidade de catalogação. Pelo contrário, estas abordagens desfazem a necessidade de tais gavetas e propõem princípios sobre os quais se orientam diversas práticas de criação e pensamento artístico.
O vídeo, o som, a instalação site-specific, ou as artes performativas, poderão ser considerados os géneros artísticos, ou áreas, onde situo o meu trabalho. No entanto, para a presente exposição, interessa-me declará-los enquanto elementos/fragmentos de uma experiência comum. A mesma experiência não obedece criteriosamente a nenhuma regra ou definição de áreas artísticas específicas, a experiência que concebi influencia-se livremente com as relações que consegue estabelecer entre as diferentes instâncias. Em suma, apesar de situar a imagem em movimento e a criação sonora como elementos fundamentais deste trabalho, tanto a literatura como outras artes, tanto conversas banais ou episódios quotidianos de uma vivência pessoal, me serviram de alimento poético a este trabalho.
Som & Imagem = Vídeo ?
No discurso sobre as práticas intermodais podemos acomodar práticas que vão desde as instalações interactivas até às artes performativas. Para o presente trabalho interessa-me dialogar com práticas audiovisuais que considero integrarem princípios da intermodalidade.
Considerando o vídeo com um meio híbrido pela sua natureza constituinte baseada em áudio e imagem, este pode ser considerado intermodal. ^[“Diz-se de ou técnica que permite registar magneticamente ou mecanicamente a imagem e o som num suporte e restituí-los num ecrã em directo ou em diferido.”"vídeo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (em linha), 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/v%C3%ADdeo.]
No seio da arte, o surgimento do vídeo apareceu enquanto elemento disruptivo, acomodando experiências marginais do cinema, da música e sendo incorporado nas artes performativas, instalação e artes visuais.
"Its revolutionary aspect lies in the ability to set ideas previously held in stasis or silence into motion and audibility; to combine audio and visual elements.” Rogers (2013, p.43)
No entanto, a relação da imagem em movimento com o som é representada desde sempre. A novidade que o vídeo apresenta é a possibilidade de evocar dimensões temporais e espaciais extrafísicas e convocar relações multissensoriais a partir de uma mesma fonte. O termo audiovisual “(...) diz respeito simultaneamente ao ouvido e à vista." ^["audiovisual", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (em linha), 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/audiovisual.].
O termo provém da junção destes dois sentidos, no entanto, não fica garantida a relação rizomática apenas por se juntarem estas duas instâncias.
Além de criações que incorporam a dimensão A/V num sistema hierárquico, em que tanto a dimensão sonora quanto a dimensão visual podem assumir protagonismo, existem na arte contemporânea diversas criações que centram a sua pesquisa na procura por relações entre os dois domínios que promovem um diálogo fluído construído através de um sistema horizontal. ^[“With the development of both film theory and practice in the 1920s and 1930s, further techniques and forms were created that had a profound influence on the evolution of Live Visuals. Oskar Fischinger, Len Lye and Norman McLaren’s experiments with drawn sound and image on film stock produced a startling synchronicity between the visual and aural. Editing with a handwork and precision that was previously impossible, they established a new form of audio-visuals: the visual music film. While both Fischinger and McLaren produced linear short films, their techniques of image and sound matching have informed audio-visual artists to the present day.” (Gibson, 2023, p. 41)]
“Wich Geometric shapes would create both sound and images; what kind of music could be created by the visual pattern of the sound track.” (Fishinger in Weibel, 2019, p.108)
Oskar Fischinger e Norman McLaren sensivelmente no ínicio da década de 1940 faziam experiências que relacionavam o som com a imagem de uma forma direta.
Quase um século depois, artistas como Ryoji Ikeda ou Pan Sonic , utilizam as mesmas lógicas de reatividade e sincronismo.
Estas são exemplos de obras que utilizaram a sinestesia como base conceptual. A sinestesia é explorada enquanto efeito e objetivo. Apesar de poderem haver questões na utilização deste termo enquanto condição psicológica no discurso artístico, interpreto o recurso a esta expressão num sentido figurado que promove os dois elementos numa relação que extrapola a individualização de um ou de outro e proclama a experiência multissensorial. ^["Acredito que com tecnologias mistas possamos desenvolver am- bientes ou implantes, que façam a experiência atingir deformações de estados mentais numa pessoa não sinesteta e a conduza à experiência pseudo sinestésica. Esta sim seria uma obra onde a pseudo sinestesia faria parte como elemento poético. A pseudo sinestesia é tomada, apa- rentemente, sem muito rigor nas fontes consultadas listadas anterior- mente. Sacks, 1947 utiliza a expressão “metáfora pseudo sinestésica” para explicar uma experiência que, de fato, não é sinestésica, embora seja tomada como sendo." (Leote, 2014, p.54)]
“Whether audiovisual correspondences occur through involuntary cognitive association, planetary singing, scientific logic, or learnt responses, it is clear that music and image have a long history of interaction, the synergetic aspiration of video-artist-composers, then were old in both concept and practice.” (Rogers, 2013, p.76)
Gene Youngblood na sua obra Expanded Cinema, descreve o uso estético da tecnologia como a forma de desenvolver uma consciência que se corresponda com a realidade atual e revele a necessidade de explorar esta relação de forma sensorial – equacionando os sentidos com a produção de pensamento. Assim, lógicas abstratas contaminam lógicas narrativas e ilustrativas com o objetivo de amplificar a experiência corpórea.
“I define aesthetic quite simply as: the manner of experiencing something. Kinaesthetic, therefore, is the manner of experiencing a thing through the forces and energies associated with its motion. This is called kinaesthesia, the experience of sensory perception. (...) This is possible because there is no a priori dependency between the conceptual and design information (i.e., the energy) of the individual parts. The existence of one is not requisite on the presence of another. They are harmonic opposites.” (Youngblood, 1970, pp. 97-107)
O estímulo multissensorial nas experiências artísticas enquanto possibilidade inclusiva é cada vez mais assumido enquanto negação de uma verdade sintática e sintética, expandindo as possbilidades de interação com a obra de arte.
“Such disjunctions between the auditory and the visual are not the only alternatives to the classic subordination of sound to image or to “synaesthetic” projects that amount to the same thing. Several recent collaborations between filmmakers and sound artists fundamentally affirm the sonic and reveal the capacities of cinema as a form of sonic art.” (Cox, 2018, p.203)
Mesmo não integrando explicitamente o conceito de sinestesia, Chion (1994), um importante pensador do papel do som na experiência cinematográfica, propõe "A Lei do Terceiro Significante" em que sugere que o áudio e imagem juntos podem criar um terceiro significado que não é derivado de nenhum dos elementos isoladamente. Quando o áudio e a imagem se combinam, eles podem sugerir novas interpretações ou dar vida a significados que não seriam percebidos apenas com um deles.
Nam June Paik é um exemplo de um artista que ao longo da sua extensa e variada obra colaborou com diversos artistas de várias áreas recorrendo ao vídeo enquanto media que junta e agrega outras disciplinas e ferramentas.
Trabalhos de natureza mais experimental como o do videasta japonês Takashi Ito, que em 1981 concebeu Spacey, são também referências enquanto desafio técnico e tecnológico mas também enquanto um objecto cuja imagem e áudio operam em simultâneo numa aparente repetição que pode sugerir uma imersão ritualística sobre a geometria na forma das coisas.
Na relação com a música, tanto em videoclips, como em Live-visuals, temos vindo a ter uma panóplia diversificada de exercícios audiovisuais que invocam os conceitos sugeridos.
“The 1960s brought psychedelia, social consciousness and communal activity. All these came together in visual performances known as light shows. Typically presented as visual accompaniment to rock concerts, these shows were generally performed by ensembles who were attached to particular venues and played with whatever bands appeared there.” (Collins & Escrivan Rincón, 2017, p. 127)
O canal televisivo norte-americano MTV na década de 1980 foi significante para a afirmação da linguagem A/V com a promoção de uma relação visual com a música em que VJs (video-jockeys), através de videoclips e performances ao vivo, criaram a ponte entre estas experiências e um público mais alargado. ^[“Undoubtedly the development of video as a format in the late 1970s and 1980s contributed greatly to the interplay between sound and image. The rise of the music video via MTV (and others) ushered in an era in which music was often discovered because of its visual representation. While early-era MTV music videos are obviously not live in any sense, they plainly created a technical and conceptual language for the cross-pollination between sound and image and undoubtedly influenced the next generation of scratch video artists and VJs.” (Gibson, 2023, p. 81)]
Hoje em dia, não é uma novidade encontrar performances musicais dos mais distintos géneros que se acompanham de projeções vídeo ao vivo.
No que diz respeito à música eletrónica enquanto conceito amplo de música produzida eletronicamente, Aphex Twin, Mouse on Mars, Squarepusher ou Ryoji Ikeda são alguns exemplos de artistas onde o vídeo está muito próximo da criação musical quer no contexto do videoclip, quer no contexto de apresentações ao vivo. Poder-me-ia focar no levantamento de vários artistas musicais que apresentam diferentes relações com o vídeo, ainda assim, na maioria das vezes o vídeo aparece secundarizado. Ou seja, os aspectos visuais da luz e do vídeo reagem às dinâmicas sonora.
Os vídeos em seguida representam técnicas de videosamplingque consiste numa composição A/V a partir de pequenos fragmentos de vídeo.
Apesar de nos exemplos demonstrados já podermos verificar uma relação com a imagem diferente dos exemplos musicais anteriores, uma vez que concebem o vídeo e o áudio a partir de uma mesma fonte, todas estas referências orbitam em torno da criação musical.
Torna-se um exercício complexo definir critérios para definir as fronteiras entre o videoclip e a videoart. ^[Today it seems that both forms have collapsed into each other rather than held their own as this chapter set out to explain. What we are left with is a very close relationship between the two forms, with video art being influenced by the tropes of music video and with music videos featuring ambiguous imagery that operates in ways strikingly similar to video art. (Vomberg & Dreckmann, 2023, p.195)] Tal facto é reflexo da hibridização da arte contemporânea, para a qual contribuíu também o surgimento do vídeo. Tal como as formas se misturam e tornam difícil situar a obra, também as relações com o mercado contribuem para essa indefinição, por vezes problemática por se apresentar num limbo entre expressões artísticas e fórmulas de entretenimento massificadas. ^[“Evidentemente, as coisas se apresentam de outra forma se falarmos do direito de cada um se inspirar no que quiser, sem pretender ser necessariamente fiel ao sentido original. Na medida em que a evolução histórica destas últimas décadas não permite a realização da arte – porque ainda não saímos da sociedade capitalista -, podemos continuar a fazer arte, e então vale mais se inspirar em modelos críticos do que se dedicar sem limites ao mercado e ao consenso.” (Anselm Jappe in Oliva & Rezende, 2007, p.22)]
Um outro exemplo de um projecto que pode ser enquadrado enquanto musical mas que apresenta uma relação horizontal é o duo britânico Sculpture, que se descreve como: “Audiovisual performance duo, Sculpture, aka musician Dan Hayhurst and visual artist Reuben Sutherland, generate temporary states of digital/physical recomposition, device misuse, comic strips, pattern making, video art and electronic music.” ^[https://www.youtube.com/@SculptureAV]. O que me faz referenciar este projeto, como especial neste contexto, é o facto dos conteúdos sonoros e visuais estarem associados a uma fisicalidade e complexidade que se diferencia das outras experiências musicais que incluem o vídeo.
Como visto anteriormente, nos campos do cinema e da videoart, existem outros exemplos onde as relações entre o áudio e a imagem assumem protagonismo. Os vídeos que se seguem são trabalhos de diferentes artistas, de diferentes realidades. Se em És a nossa Fé (2004) temos um trabalho do realizador português Edgar Pêra musicado por Vítor Rua, em segundo temos Rubber Johny (2005) do videasta Chris Cunningham que conta com a criação sonora de Aphex Twin. Estas duas abordagens são por natureza diferentes, mas utilizo-as enquanto súmula de duas criações que, ao invés de utilizarem o som para ilustrar a imagem ou vice-versa, ambas comportam a qualidade de criar entre o som e a imagem relações que não se sustentam exclusivamente na reatividade e sincronismo e procuram nessa relação a produção de um sentido poético.
Se as questões visuais e sonoras são importantes para a criação de uma expressão multissensorial e horizontal, suscetível de diferentes interpretações, também a forma como se desenvolvem narrativas lineares tem vindo a ser questionada para este efeito. Youngblood na década de 1970 foi um dos autores que questionou o Cinema sobre a formulação da narrativa enquanto mimesis da realidade.
Já no século XXI, o filósofo francês Jacques Rancière (2005, 2010) vem dizer que abordagens que desconstroem a narrativa linear activam o público na criação de significados próprios. Ou seja, através da partilha de material sensível, cada pessoa é autónoma para encontrar relações concretas e abstratas com a sua própria forma de interagir e percecionar a realidade.
Objetos que se apresentem complexificados são assim, contemporaneamente, um desafio à atenção, à nossa capacidade de interação.
Andrei Tarkovsky, Luis Buñuel, David Lynch, Jean-Luc Godard ^["Godard é um bom exemplo de quem conseguiu inventar um pequeno motor que funciona entre a arte, a literatura e o cinema. Há um sistema de tradução permanente no cinema de Jean Luc Godard, entre as diferentes disciplinas, entre texto e imagem." (Bourriaud in Oliva & Rezende, 2007)], são exemplos consagrados no cinema que desafiaram as lógicas tradicionais ao propor abordagens poéticas, oníricas, filosóficas que desafiam as narrativas tradicionais de diferentes formas, por exemplo, com a utilização de um tempo não-linear.
Uma outra referência artística que se distancia das formas tradicionais do cinema será Gaspar Noé que, em “Enter The Void” (Noé, 2009), cria um filme onde a disrupção sonora e visual transporta a experiência cinematográfica para uma dimensão sensorial altamente imersiva.
Refiro estes exemplos pela capacidade de incorporar uma “história” num trabalho artístico e ao mesmo tempo assegurar uma linguagem poética própria que não pretende ser representativa/ilustrativa de uma realidade concreta. A história ou a “realidade” poderão ser equacionados como elementos que tal como o som e a imagem, contribuem para uma experiência sensorial que coloca em contacto distintas dimensões.
Neste contexto, talvez mais distante dos artistas até agora apresentados, interessa-me referir o exemplo da série How to with John Wilson, Wilson, J. (2020–2023). É uma outra experiência com a qual me relaciono no sentido em que cruza a narrativa, o som e a imagem de uma forma livre e desvinculada do conceito de “verdade” ou tempo-linear. O autor grava com uma serendipidade com a qual consigo identificar também o meu trabalho.
“The possibility of a relational art (an art taking as its theoretical horizon the realm of human interactions and its social context, rather than the assertion of an independent and private symbolic space), points to a radical upheaval of the aesthetic, cultural and political goals introduced by modern art.” (Bourriaud et al., 2002, p. 14)
Por último, no que diz respeito às práticas intermodais e transdisciplinares, o papel e posicionamento do “público” na criação é também um elemento considerado por diversos autores e que tem forte impacto no desenrolar dos conceitos que apresento.
Autores como Rancière, referido anteriormente, ou Nicolas Bourriaud, vêm levantar questões à arte contemporânea sobre qual o papel de quem observa na experiência artística. Interessa-me para o presente trabalho levantar esta temática por relacionar directamente a criação de sistemas artísticos rizomáticos com esta relação com o outro. Assim sendo, a disrupção dos cânones de apresentação das criações A/V representam também novas possibilidades interpretativas e relacionais onde, uma vez mais, contextos como as apresentações site-specific, cinema expandido, instalações com múltiplos suportes visuais, podem significar uma complexidade que se aproxima das noções rizomáticas referidas no início deste texto.
Processo Criativo
Tal como referido na introdução, no contexto da presente descrição, divido o processo criativo deste trabalho em dois principais eixos:
UMA VIAGEM QUE SE PROLONGA – autoetnografia - Resultante de uma viagem ao Lago Walden inspirada pelo livro Walden ou a Vida nos Bosques de Thoreau. Nesta parte dedico-me, a partir de uma experiência pessoal e subjetiva, a encontrar a relação entre a experiência pessoal e a criação artística a partir das aparentes tensões entre Tecnologia e Natureza
EXPERIÊNCIAS AUDIOVISUAIS - criação audiovisual - Através do cruzamento das imagens e sons gravados ao longo da viagem com sons e imagens produzidos eletronicamente a partir de síntese, pretendo dar seguimento a essas mesmas tensões de forma poética.
Uma viagem que se prolonga – autoetnografia
“Found yourself in a new direction
Arrows fallin' from the sun
Canyon callin', would they come to greet you?
Let you know you're not the only one.”
(Beach House, 2012) ^[Beach House. (2012). Myth. No álbum Bloom. Sub Pop Records]
Uma viagem pode ser um desvelar de desconhecidos impossíveis de prever.
Procurar a luz incessantemente pode deixar-nos sem conseguir escutar.
Nos últimos dias de Maio estava em direção ao Colorado após vários dias “sozinho” viajando pelos parques naturais.
Através da plataforma Couchsurfing^[ www.couchsurfing.com é uma plataforma que põe em contato pessoas que em viagem procuram por um lugar para dormir em casa de outros utilizadores que se dispõe a gratuitamente a receber estes viajantes. À parte da gratuitidade desta plataforma, conhecer “locais” ou estabelecer novas amizades é uma mais valia para quem viaja. Dependendo da casualidade, escolha ou perfis, muita das vezes esta aplicação é responsável por nos relacionar com lugares e pessoas inesperadas. É uma alternativa às tendências turísticas e faz-nos perceber os lugares pela vivência de quem os habita.] estabeleci contacto com o Jeff que se prontificou a receber-me. Há algumas semanas que estava em regime meditativo no meio da natureza e dos turistas e tinha apenas proferido poucas palavras circunstanciais e funcionais.
Resolvi que queria parar na cidade de Denver e conhecer outra realidade, talvez mais cultural, desta região.
Assim que cheguei, o Jeff recebeu-me e ainda não tinha posto a mochila no chão e já entrávamos numa conversa que se estendeu por horas e continuou durante os 2/3 dias que fiquei na sua casa.
Começámos por falar da minha viagem e Jeff confessou-me que me recebera porque lhe tinha interessado as razões porque me dedicava a fazê-la. Entre muitos temas que se entrecruzavam percebemos que tínhamos vários interesses culturais e artísticos comuns.
Parecia que estava a falar com um amigo que já conhecia há bastante tempo com o qual tinha ido a diversos concertos.
Em conversa disse-lhe que de seguida planeava ir a Washington DC e depois iria a Baltimore.
Baltimore não seria uma escolha muito óbvia para quem viajava por aquelas zonas. Queria passar lá apenas porque tinha a referência das revoltas de 2015^[https://www.theguardian.com/us-news/2015/apr/27/baltimore-police-protesters-violence-freddie-gray] e de ser a cidade origem das bandas Animal Collective e Beach House. Mesmo não sendo bandas que ouvisse assiduamente por aquela altura, ambas me acompanharam em muitas viagens. Jeff também gostava muito de Beach House e já tinha ido a vários concertos deles. Passaram-se os dias onde, entre conhecer a cidade, fazer rafting e hiking, continuámos a trocar referências musicais, falar de sintetizadores, livros, etc.
Quando me despedia, disse ao Jeff uma tentativa de piada parecida com: “Pronto, vou para Baltimore e depois quando conhecer os Beach House envio-te uma foto com eles.”.
Quando cheguei a Baltimore encontrei-me com uma amiga de um amigo português. Apenas sabia que era amiga de um amigo e quando a conheci convidou-me para ir visitar um rio que ficava num bosque a pouca distância da cidade.
Em conversa, disse-me que tocava numa banda que já tinha feito uma digressão com os Beach House, que eram amigos pessoais e que gostava muito dos naturalistas e transcendentalistas, nos quais se incluíam Thoreau. Recomendou-me ler Emerson.
Relato isto com algum entusiasmo porque este ponto foi marcante para tudo o que vou descrever em seguida. Foi marcante perceber que as ideias que criamos solitariamente na cabeça não são, na maioria das vezes, coisas que possam acontecer. A realidade, quando se desenrola indefinidamente em forma de aventura, é sempre muito mais interessante do que qualquer sonho que se possa desenhar.
Conhecer pessoas com quem partilhei interesses e, mais que isso, inquietações, foi talvez o motivo da viagem. Desconstruir os próprios dogmas em que me afogo depende também das possibilidades de ver refletido nos outros a minha própria estupidez/condição.
Uma outra experiência que me ocorre descrever aconteceu em Las Vegas.
Para chegar à cidade tive de cruzar o Death Valley. Esta travessia teria de acontecer de madrugada, correndo o risco de com o calor toda a tecnologia, incluindo o carro, deixar de funcionar. Pensava que às 5H00 seria uma boa altura para começar a travessia porque iria apanhar o nascer do sol. No entanto, às 6H00 a temperatura já batia os 40ºC. O meu telemóvel e uma das câmaras sobreaqueceram rapidamente e deixaram de funcionar. O carro, por sua vez, acusava já a temperatura o que me obrigou a fazer a viagem de forma muito lenta e sem ar condicionado. Por esta altura recordei-me que Las Vegas é uma cidade no meio do deserto e que, não estando muito distante do Death Valley, as temperaturas certamente não eram amigáveis. Ao contrário do planeado, não iria conseguir dormir no carro com tanto calor. Após conseguir ligar o telemóvel outra vez, entrei na plataforma Couchsurfing e enviei duas mensagens a duas pessoas diferentes. Passado pouco tempo o Jonathan escreveu-me. Na mensagem dizia que teria todo o gosto em receber-me e avisou-me para o facto de que era surdo. Na altura em que li a mensagem em inglês a palavra “DEAF” passou despercebida e fui encontrar o Jonathan sem me aperceber da sua condição.
Passar uns dias em Las Vegas com Jonathan foi uma das experiências mais interessantes que tive nesta viagem. Se inicialmente usámos o telefone como suporte para escrever, passado um dia conseguíamos passar um dia a conversar sem necessitar do mesmo. Jonathan ensinou-me algum vocabulário de Língua Gestual mas a nossa comunicação aconteceu de forma espontânea sem depender de uma linguagem comum. Jonathan vivia com o seu cão, era professor de lingua gestual, tinha na sua casa um aquário de peixes e gostava de música eletrónica porque sentia fisicamente com maior intensidade as frequências graves.
A sua hospitalidade e simpatia motivaram-me a ficar mais tempo e conhece-lo melhor. Como era fim-de-semana, Jonathan sugeriu-me que fossemos conhecer a cidade e beber “uns copos”.
Interessa-me enunciar este momento porque, durante todo o período em que estive com Jonathan, os meus sentidos alteraram-se.
A surdez é uma condição para a qual o Mundo está muito pouco preparado. A tecnologia e a boa-vontade das pessoas mascaram a ineficiência política de criar um lugar que seja comum e acessível a todas as pessoas.Decidi que iria assumir que não falava com som, tal como Jonathan não falava (convencionalmente). Assim, fui guiado pela forma como se movia na cidade e interagia com as pessoas. Os meus sentidos, de alguma forma, adaptaram-se e lembro-me de começar a dar atenção ao som de uma outra forma. A linguagem oral não ocupava a minha atenção e outros sons, que naturalmente me passam despercebidos na comunicação, ficaram audíveis.
“Time and memory merge into each other; they are like the two sides of a medal. It is obvious enough that without time, memory cannot exist either. But memory is something so complex that no list of all its attributes could define the totality of the impressions through which it affects us. Memory is a spiritual concept!” (Tarkovskij & Hunter-Blair, 1989, p. 57)
Estou consciente que neste ponto falo de uma viagem que ainda não expliquei.
É propositado, o tempo narrativo não tem de ser o tempo cronológico nem é o tempo que pretendo abordar com este projeto.
Tal como Bergson nos sugere a partir dos seus escritos sobre tempo, duração e memória, o tempo descrito^[“Nossa percepção pura, com efeito, por mais rápida que a suponhamos, ocupa uma certa espessura de duração, de sorte que nossas percepções sucessivas não são jamais momentos reais das coisas, como supusemos até aqui, mas momentos de nossa consciência. O papel teórico da consciência na percepção exterior, dizíamos nós, seria o de ligar entre si, pelo fio contínuo da memória, visões instantâneas do real. Mas, na verdade, não há jamais instantâneo para nós. Naquilo que chamamos por esse nome existe já um trabalho de nossa memória, e consequentemente de nossa consciência, que prolonga uns nos outros, de maneira a captá-los numa intuição relativamente simples, momentos tão numerosos quanto os. de um tempo indefinidamente divisível(...) A heterogeneidade qualitativa de nossas percepções sucessivas do universo deve-se ao fato de que cada uma dessas percepções estende-se, ela própria, sobre uma certa espessura de duração, ao fato de que a memória condensa aí uma multiplicidade enorme de estímulos que nos aparecem juntos, embora sucessivos.” (Bergson, 1999, p.73)], neste meu contexto autoetnográfico é claramente um tempo mais emotivo e sensitivo do que linear ou horizontal.Quanto à viagem, esta em específico, começou a desenhar-se em meados de 2020, num contexto de pandemia, em que estava a residir nos EUA.Vivia, nesta altura, de forma bastante isolada. Não só por motivos da pandemia mas sobretudo por uma decisão de viver num contexto remoto.
Walden ou a Vida nos Bosques, livro escrito por Henry David Thoreau e publicado pela primeira vez em 1854, era um livro que me acompanhava há algum tempo e que me motivava a uma experiência de vida que me afastava de uma sociabilidade permanente em detrimento de um contacto próximo com um meio natural pouco populoso.
Durante este período, repentinamente tudo começou a arder, tendo deflagrado um incêndio na área onde vivia que durou bastantes dias. ^[https://www.theguardian.com/us-news/2020/dec/30/california-wildfires-north-complex-record]
Fui forçado a sair de casa e recordo-me de terminar de ler o Walden, ou a Vida nos Bosques numa tarde cinzenta/avermelhada onde o fumo constante me enublava os pensamentos. Percebi nessa altura que estava numa encruzilhada comigo mesmo: Não me sentia realizado ao estar isolado e não me sentia motivado a mover-me para nenhum outro lugar com dinâmicas sociais e culturais mais ativas.
Decidi que viajar sozinho durante um longo período de tempo poderia ser uma ajuda para desembaraçar o novelo. Abri o “Google maps” e pus o Lago Walden, em Masschussets, como destino. Distava do ponto onde me encontrava sensivelmente 4900km. O tempo de viagem calculado pela rota seria de 1 dia 20 horas ininterruptas.
Resfriada esta ideia e com a necessidade de voltar a casa passado algum tempo desalojado, a viagem ficou em suspenso e percebi que necessitava de mais tempo para para o planeamento da aventura.Assim aconteceu, passado mais ou menos um ano, começava a planear a travessia.
O que me levou aos EUA foi uma oportunidade de viajar e trabalhar num contexto desconhecido e mais estimulante do que o que se me apresentava em Portugal.Com o decorrer do tempo fui percebendo que as paisagens naturais e a biodiversidade são muitas e variadas neste país e isso motivou-me a desenhar um trajeto que passasse em alguns parques naturais sem ter noção que estava a entrar numa rota turística pelas “atrações” naturais denominadas National Parks que atraem milhares de pessoas durante o ano. A título de exemplo, e porque considero que este dado será importante para o desenrolar do que escrevo, o Arches National Park recebeu no mesmo ano em que o visitei, 2021, cerca de 1,806,885 pessoas ^[https://www.nationalparked.com/arches/visitation-statistics]. O Zion National Park, outro parque que visitei, nesse mesmo ano recebeu 5,039,835 de pessoas ^[https://www.nationalparked.com/zion/visitation-statistics].
Importa referir que a minha rota passava por estes dois parques, sendo que eu fui um desses milhões.
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/2gmlq00i1i/desktop.mp4?locale=pt](Vídeo registado num trilho no Zion National Park)
Retomando o plano, decidi que realizaria esta viagem e que passaria pelos parques naturais e por algumas cidades principais dos E.U.A.A minha preparação para esta viagem centrou-se sobretudo em questões práticas de como sobreviver os meses de Junho e Julho a viver no carro e a fazer mais de 10,000km num carro de 1997.Por esta altura adquiri duas câmaras de vídeo. Uma handycam e um action camera. Em complemento, tive de perceber qual o material que me permitia realizar os backups das imagens e carregar as baterias em viagem. Um dos desafios passou por desenvolver uma estratégia de conseguir converter os 12V do carro para carregar as baterias dos vários dispositivos e confinar todo o aparato tecnológico, comida, roupa e cama num carro de passageiros.Quanto ao roteiro, decidi que não iria pesquisar muito mais que alguns checkpoints e esta seria uma expedição com um único ponto definido na rota - o lago Walden. Quanto ao caminho até lá, decidi que iria traçando a rota à medida que ia descobrindo novos lugares e tendo novas referências. Li bastantes artigos sobre como viajar no carro e poucos sobre os lugares que planeei visitar. Ingenuamente cedi à ideia de que poucas pessoas visitam lugares naturais e que teria sempre a possibilidade de decidir onde parar o carro e dormir tranquilamente por esses bosques.A verdade é que tudo nos EUA é extremamente regulamentado e vigiado o que para um viajante como eu se torna o maior desafio, sendo que planeava fugir às rotas turísticas, aos hóteis e aos hostels, acabei por recorrer muitas vezes ao Couchsurfing e a parques de estacionamento de grandes centros comerciais, lugares onde à partida a Polícia não importuna quem dorme no carro.
A 15 de Junho saí então do lugar onde estava, perto de Oroville, Califórnia.
A rota da viagem foi – Yosemite, MonoLake, DeathValey, Las Vegas, Zion, Gran Canyon, Page (Horseshoe Bend), Moab (Arches), Denver, Rocky Mountains.Washington DC, Baltimore, Nova Iorque, Cape Town, Boston, Concord (WALDEN!), Detroit, Chicago, Utah – Oroville.
Seria outro âmbito a descrição pormenorizada da viagem. Apesar de ter passado por bastantes estórias, o meu diário de viagem tem apenas algumas descrições de momentos e outras notas e pensamentos. Não foi um momento em que escrevesse muito, ao contrário do que pensava antes de entrar no carro pela primeira vez. Devo confessar que apesar dos momentos, estava demasiado autocentrado e o que registei na altura são pensamentos, notas e alguns ensaios diarísticos que contêm muitos reflexos da confusão e frustração que me acompanhava.
“O ESTRANGEIRO - Lembras-te de que falamos nas almas de escravos que não podem contemplar a beleza? Definiremos o escravo não como aquele que está sujeito a um senhor, mas como aquele que se não pode libertar da miséria dos dias iguais, que não sentiu palpitar dentro em si uma verdadeira aspiração humana ou, se a sentiu, lhe não pôde dar qualquer satisfação.” (Silva, 2021, Contracapa)
Procurava nesta viagem algumas respostas às idiossincrasias que me inquietavam: entre a utopia que sonhava e a realidade áspera que se apresentava.
Durante a agitação do pensamento encontrava na contemplação das paisagens e das estradas bastantes lugares para fluir o pensamento.Recordo-me de certas vezes ser incapaz de me impressionar com o que observava. Incapaz de olhar e escutar. Essa foi a pior sensação que tive durante todo este período e acho que é reveladora da tensão que ainda estava por resolver.As músicas e entrevistas que me acompanhavam nas largas horas que passava no carro, ajudavam-me a pontuar e ritmar o pensamento. Outras desnorteavam-me do caminho com grande eficácia. É estranho pensar-se que alguém que viaja passe tantas horas do dia num carro, sozinho a ouvir memórias.Contudo, esses mesmos momentos, aparentemente momentos de passagem, foram fundamentais para assimilar as experiências. O contraste entre os devaneios e euforias que tinha nessas monótonas estradas ora me revigoravam o sentido da viagem, ora me perguntavam: O que é que estás aqui a fazer?
Essa inquietação acentuava-se inequivocamente quando saía do carro e me deparava com paisagens assoberbantes que se encontravam pontuadas por aglomerados de turistas.
Assim como os animais que encontrei na viagem, também as massas de turistas pareciam iguais, sendo muito difícil distinguir os seus indivíduos. Elas representavam uma espécie e não um indivíduo. Do alto do meu isolamento, no privilégio de seguir viagem sozinho sem ter de falar com quem não queria, sem ter de dar explicações ou cumprir horários, conseguia sentir-me deslocado desta massa. Forçava-me a crer que eu era um espião. Contudo, muitas das vezes conseguia deslocar-me do meu corpo e perceber que era apenas mais um turista num carro, com um boné, uma câmara e uma mochila a olhar para o desconhecido.
Um dos maiores desafios que tive foi o de perceber qual a diferença entre contemplar e gravar. Qual instrumentalização do presente como motivo de uma memória futura!A ideia que a memória é tema do passado ficou claramente desfeita em mim. A memória é uma ideia de futuro, assim como o saudosismo. O passado é apenas o referente.
A câmara que segurava, ainda que pudesse ter a intenção de com aquele material produzir material artístico, não deixava de ser uma câmara junto de outros milhares de câmaras. Considerar que o que filmava era mais especial do que qualquer outro turista é uma presunção altiva.
No entanto, passados três anos sobre esta experiência posso falar com outra propriedade sobre o que recolhi. Não necessito de me equivaler a quem me rodeia já que este processo é ainda mais solitário do que o processo de recolher as imagens. Revisitar o material gravado não foi um processo fácil. Durante dois anos foi praticamente impossível rever o que gravei. Não porque não tivesse curiosidade, mas porque havia um cansaço latente que não sabia explicar. Acredito que a viagem ainda não tinha assentado o suficiente para ser possível olhá-la com distância.
“No início deste relato tentei explorar a natureza das viagens, como são coisas em si mesmas, cada uma com a sua individualidade e não havendo duas iguais. Especulei com uma espécie de admiração quanto à força da individualidade das viagens e fechei com o postulado de que não são as pessoas que escolhem as viagens, as viagens é que escolhem as pessoas. Essa discussão, no entanto, não se estende ao período de duração das viagens. Esse parece ser variável e imprevisível. Quem não reconheceu já que uma viagem estava acabada e morta antes do regresso do viajante? A inversa é também verdadeira: há muitas viagens que continuam muito tempo depois de ter cessado o movimento no tempo e no espaço. Lembro-me de um homem em Salinas que na meia-idade fez uma viagem de ida e volta a Honolulu, e essa viagem continuou pelo resto da sua vida. Podíamos observá-lo na sua cadeira de baloiço, no alpendre da entrada da sua casa, de olhos semicerrados, viajando eternamente para Honolulu.A minha viagem começou muito tempo antes de ter partido e acabou antes de voltar. Sei exatamente onde e quando acabou.” (Steinbeck, 2016, p. 249 )
Em Viagens com o Charlie, livro publicado em 1962, Steinbeck relata a sua viagem solitária pelos EUA.
Neste livro encontrei algumas semelhanças entre o que autor escreveu e o que vivi e quase me desassociei de Thoreau para me associar a Steinbeck. Aparentemente um representava o movimento e outro a estagnação.
No entanto, considerar o tempo como uma linha cronológica linear é uma perspetiva semelhante à de considerar o movimento apenas enquanto a deslocação de corpos pelo espaço. Não há inverdade nenhuma nestas assunções, mas acredito que a metafísica associada a estes conceitos não permite encerrá-los tão prontamente. Desta forma, questionar o que se lê e o que se pensa é uma necessidade constante de atualização e se com esta viagem aprendi novas dimensões de tempo, espaço e silêncio; aprendi igualmente que nenhum dogma ou sonho deve ser perpetuado praticamente na vida. Talvez devam inspirar-nos a viver livremente. Hoje, consigo perceber que posso viver com os dois.Tomar uma parte com o todo era um risco que corria na altura e, à medida que fui acumulando novas leituras durante este processo, percebi que não existe um traje que seja exatamente a nossa medida porque a nossa orgânica assim o impede.Desta feita, consigo perceber, que se para Steinbeck a viagem terminou ainda antes de ter começado, para mim a viagem prolongar-se-á sempre que sobre ela me debruçar.
Depois de passar uns dias em Nova Iorque, percebendo o que é estar fisicamente em tantos lugares que apenas tinha visto filmados, cheguei a Boston, a cidade mais perto do Walden.No carro, já de noite, calculei novamente no Google Maps a distância do centro da cidade e o lago Walden em Concord.
Aproximadamente 40 km de distância não me parecia longe o suficiente da população. Claro está que 40 km em 1847 representavam outra distância. No entanto, nesse momento esclareci as minhas suspeitas que em Walden não encontraria nenhuma possibilidade de esclarecimento final.
Tinha planeado ir ao Walden apenas no dia seguinte mas decidi que nesse mesmo dia iria fazer um reconhecimento/repérage do território. Quando cheguei ao Walden, após mais de 30 dias de viagem e um ano de espera, encontrei um parque de estacionamento com várias secções e máquinas para pagamento. Percebi que seria impossível pernoitar por ali e que para ali passar um dia teria de pagar aproximadamente 7$. Como já passava das 19h, não precisei de pagar e dei uma volta inteira ao lago. Durante esta volta ao lago apercebi-me que tudo estava vigiado, humanizado, muralhado. O que havia de Thoreau eram memórias museológicas que eram claramente secundárias face às possibilidades de divertimento aquático para as famílias que ali veraneavam.
Mais uma vez perguntei-me: O que é que estás a fazer aqui?
No dia seguinte, decidi levantar-me cedo e estar no Walden ao nascer do dia. Esta possibilidade seria a mais próxima que teria de passar um longo período ali, já que o meu plano de por ali acampar uns dias foi aniquilado pela evolução dos tempos.Após umas quantas voltas ao lago e uns mergulhos que desejava serem revigorantes mas que eram apenas mergulhos, fui até ao Museu/Posto de Turismo que abria às 9h. Passei algum tempo a olhar o merchandasing que havia de Thoreau. A senhora que trabalhava na loja/museu perguntou-me de onde tinha vindo e porque ali estava. Depois de lhe responder que tinha vindo para ver o que restava de Thoreau e que estava à espera de um destino menos turístico, a senhora disse-me algo que a minha memória traduz assim:
“Oh, estás um pouco desiludido certo? O que esperavas encontrar? Deixa lá, sabes que não és o único que já veio aqui guiado pelo livro. De qualquer forma, a família do Thoreau vivia a poucos km daqui e ele ia frequentemente a casa. Talvez os relatos possam estar romantizados. Ainda assim queres ver um vídeo de uma hora sobre o Thoreau? Eu posso pô-lo só para ti porque não vem aqui mais ninguém”.
Senti-me na obrigação de viver toda aquela realidade na plenitude e agradeci o gesto investindo em merchandasing.
Após ver o filme que oferecia uma visão ainda mais romântica do que o próprio Thoreau, pelo menos é desta forma que o recordo, dirigi-me de novo ao lago.
Tive de andar algum tempo até conseguir um lugar mais calmo. Ainda assim, os gritos das crianças a brincar e das pessoas a falar, ecoavam em todas as margens do Lago.
“As coisas não mudam, nós é que mudamos” (Thoreau, 2009, p. 356)
Esta frase de Thoreau pode necessitar de mais contexto para ser interpretada. Ela própria encontra-se num limbo. Acredito que nós mudamos mas as coisas também mudam.
“Durante uma época do verão, às sete e meia normalmente, depois da passagem do trem da tardinha, os noitibós cantavam suas vésperas por meia hora, encarapitados num toco perto da minha porta, ou sobre a aresta de uma estaca da casa. Todas as tardes punham-se a cantar quase com tanta pontualidade como um relógio, pelo espaço de cinco minutos de determinada hora correspondente ao pôr-do-sol. Tive a rara oportunidade de familiarizar-me com seus hábitos. Às vezes ouvia quatro ou cinco ao mesmo tempo em diferentes partes do bosque, acidentalmente um acorde atrás do outro, e tão perto de mim que distinguia não apenas o cacarejo depois de cada nota, mas com frequência aquele singular zumbido de mosca presa em teia de aranha, só que proporcionalmente mais alto.. Cantavam a intervalos noite adentro, tão musicais como sempre antes e durante o amanhecer. (…) Ouvi também a serenata de um mocho, que parecia vaiar. Ouvindo-o de perto podia-se imaginar o seu pio o som mais melancólico da natureza, como se ele pretendesse com isso estereotipar e tornar permanentes em seu coro os gemidos agônicos do ser humano pobre e frágil relíquia de mortalidade de quem deixou para trás a esperança, e uiva que nem um animal, ainda que com soluços humanos, ao penetrar o escuro vale, tornado ainda mais terrível por certo tom melodioso e gorgolejante (vejo-me logo às voltas com as consoantes gl sempre que procuro imitá-lo), característico de uma mente que atingiu o estado de gelatinoso mofo na mortificação de todo pensamento saudável e corajoso. (...) Alegro-me que existam corujas e mochos. Que vaiem os homens com seu pio idiota e maníaco.” (Thoreau, 2009, pp. 143-145)
A ideia de chegar em peregrinação ao santuário do eremitismo, desvaneceu-se rapidamente. Nem esse santuário existe, nem esta viagem se define por uma peregrinação. Já não vou conseguir ouvir os mesmos pássaros que Thoreau e talvez por esse motivo exista mesmo outro motivo para que a viagem continue.
“Em geral não nos lembramos de que, no final das contas, é sempre a primeira pessoa que está a falar.” (Thoreau, 2009, p.17 )
A Vida nos Bosques?
"For Thoreau the would-be sustainability concept wouldn’t be an end in itself, but rather the condition for personal freedom. The respect for nature, the moderate use of natural resources, or the careful attention towards signs of decline in natural systems, all those behaviours were connected with the capacity of self-listening that only solitude can bring. Only through the severe test of loneliness could one hope for the possibility of a society made of strong and free individuals. Only those able to take care of themselves would be able to cherish and care for our home planet.” (Soromenho-Marques, 2020, p.44)
Walden ou a Vida nos Bosques é um livro muito relevante para mim.
O livro relata as experiências de Thoreau durante os dois anos, dois meses e dois dias que viveu em uma cabana que construiu junto à margem do Lago Walden, em Concord, Massachusetts. O autor parte para essa experiência com o objetivo de se afastar da sociedade e de suas complexidades, procurando uma vida mais simples e autossuficiente. Ao longo do livro, reflete sobre temas como a natureza, a sociedade, a espiritualidade e o consumo. Thoreau defende a ideia de que viver de maneira simples e em harmonia com a natureza pode trazer maior satisfação e compreensão da vida.
A obra é organizada em capítulos que abordam diferentes aspectos dessa experiência, desde a construção da sua cabana, a obtenção de alimentos, o cultivo de uma horta, as observações da fauna e flora locais, os sons, entre os outros. Intercalado com minuciosas descrições contemplativas do ambiente que vivia, Thoreau compartilha suas meditações filosóficas e observações poéticas sobre a vida, questionando o modo de vida moderno.
Estes temas, na altura em que li o livro, fizeram-me pensar em muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. A vontade de me isolar, ou me tornar eremita, apareceu quase como uma autoprofecia.
“He argues that the romanticised conception of nature distracts from its reality as a product of unimaginable past catastrophes, marred by rubbish and pollutants that we humans make great effort to hide from sight. There is no corner of the planet not now affected by humanity; plastics have been found from the highest mountains to the deepest undersea trenches. But you would not know this from a stroll in the woods or a nature documentary. Žižek argues that this veil of tranquillity could be our downfall- we simply cannot imagine catastrophe befalling such a seemingly beautiful world, even if we know rationally that such a catastrophe is currently occurring.” (Smith Noble, 2020)
À medida que o livro respirava na minha experiência pessoal consegui perceber que Thoreau foi especial porque ficou amplamente conhecido pela sua literatura, não porque escreveu algo para mim. Fui eu que me identifiquei nas suas palavras e não as suas palavras que me identificaram.
Contextualmente, tais palavras foram escritas numa sociedade pós-industrial sobre a vitalidade de um jovem que conseguiu emancipar-se intelectualmente e que por tais motivos sentiu necessidade de confrontar essa emancipação também de forma física.
De todas as noções concretas e poéticas que retirei tanto do livro como da viagem, o lugar da contemplação enquanto “trabalho” é talvez a súmula de tudo.
Existe uma necessidade e recontextualização na leitura que fazemos das coisas. Se inicialmente muitas ideias me pareciam possíveis, hoje reconheço que a distância histórica e cultural que nos afasta, tem de ser obviamente considerada e relacionada.
O objetivo de mergulhar no Walden não será então seguir profeticamente uma vida isolada. Thoreau sugere a observação da Natureza enquanto escola dinâmica e talvez essa seja uma das principais ideias da sua obra: a simplicidade.
Tecnologia vs. Natureza?
“We are entangled with our apparatuses, and technology works a function of our intentions, but these intentions themselves exist as a function of technology. It is in this tension that we create art,, in an ongoing process to probe the limits, question, and discover the similarities between ourselves and technology.” (Carvalhais, 2022, p. 33)
O uso das tecnologias eletrónicas na arte tem se revelado uma fonte inesgotável de possibilidades criativas. As experiências artísticas vêm assim demonstrar que a tecnologia não tem de se apresentar antagónica à natureza, pelo contrário, deve ser integrada dentro do sistema natural com que interagimos.
Desde criança que as tecnologias eletrónicas audiovisuais me fascinam. No entanto, ao aprofundar conhecimentos sobre a forma de funcionamento destas tecnologias, fui-me afastando de outras práticas criativas e artística.Tocar um instrumento acústico, desenhar com papel e carvão ou em última instância cantar, são atividades que nos permitem, aparentemente, estar menos dependentes da evolução tecnológica por serem atividades que necessitam de tecnologias (não eletrónicas) mais acessíveis.
As tecnologias audiovisuais, mediante a forma como se encaram, podem sugerir uma atualização constante, um sem número de pesquisas técnicas que ocupam grande parte do tempo do que deveria/poderia ser criativo.
Desta feita, trabalhar com tecnologia é diferente de ter a tecnologia como trabalho.
O trabalho é um tema que sempre me preocupou, não pelo esforço que encarga, mas pela perigosidade de cair numa rotina ordinária em que me vejo a correr atrás do efeito e não do sentido. Ou seja, o trabalho poderá significar a subjugação da minha própria vida às leis de uma sociedade estratificada e consumista. Assim, à medida que me fui apercebendo das vicissitudes do mercado global, da Sociedade do Espetáculo, percebi que tais instrumentos, da mesma forma que nos podem facilitar processos artísticos, podem ser geradores de uma dependência e um falso sentido da novidade.
Heidegger (1977) em The Question Concerning Technology levanta o véu a uma possível relação da tecnologia com uma desumanização e uma perda de sentido na relação entre o Homem e a ferramenta tecnológica.
Marcuse (1991), por sua vez, denuncia a tecnologia enquanto possibilidade de controle que: “In the face of the totalitarian features of this society, the traditional notion of the “neutrality” of technology can no longer be maintained. Technology as such cannot be isolated from the use to which it is put; the technological society is a system of domination which operates already in the concept and construction of techniques.”
O filósofo alerta-nos para o facto de que a tecnologia tem servido para instituir formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de controlo social.
Consciente destas problemáticas, acredito que tais afirmações não se opõem à afirmação de que a tecnologia é parte da natureza. O Ser Humano, em todas as suas extensões, é parte da natureza:
“It is impossible to separate the human from its material environment as well as from the signs and images through which mankind attributes meaning to life and the world. Similarly, we cannot separate the material world - much less its artificial part - of ideas by which the technical objects are designed and used or of humans that invent, produce and use.” (Lévy (1999) citado em (Santaella & Cardoso, 2015, p.179)
Neste sentido, lutar por uma sociedade mais livre, parte também por aceitar a tecnologia como uma extensão humana - uma possibilidade que sendo utilizada enquanto meio para atingir determinado fim, pode ser um reforço à liberdade:
“But the consummation of technological rationality, while translating ideology into reality, would also transcend the materialistic: antithesis to this culture. For the translation of values into needs is the twofold process of (1) material satisfaction (materialization of freedom) and (2) the free development of needs on the basis of satisfaction (non-repressive sublimation). In this process, the relation between the material and intellectual faculties and needs undergoes a fundamental change. The free play of thought and imagination assumes a rational and directing function in the realization of a pacified: existence of man and nature.” (Marcuse, 1991, p.152)
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No momento em que acabei de ler o Walden ou a Vida nos Bosques, a demanda por esta atualização constante pareceu-me um símbolo da impossibilidade moderna. Se a partir da experimentação sonora e visual conseguia ter experiências contemplativas que relacionava com as experiências contemplativas descritas por Thoreau, o problema acentuava-se: numa vida mais próxima da Natureza talvez não haja espaço para tais tecnologias.
Tal idiossincrasia tornou-se um trabalho contínuo durante a viagem. Entre aceitar que os tempos mudam e recusar a impossibilidade de ser agente da transformação dos tempos, deambulava numa dualidade que considerava irresolúvel.
Após a viagem, houve uma nova aproximação gradual, ainda assim condicionada, de mim aos meios tecnológicos. À parte da câmara de vídeo que dificilmente largava, demorei algum tempo até conseguir voltar às experiências sonoras e visuais.
Aparentemente encerrada, a viagem tornou-se então material para pensar uma nova criação audiovisual. No entanto, a viagem não acabou, nem a influência de Thoreau perdeu o seu sentido.
"My experimental TV is not always interesting
But
Not always uninteresting
Like nature, wich isBeautiful,
Not because it changes beautifully,
But simplify because it changes."
Nam June Paik ^[consultado em (Shanken, 2009)]
Progressivamente fui voltando à pesquisa artística onde fui encontrando referências a Thoreau em diversos lugares. Curiosamente no dia em que terminei de reler o Walden por motivos da escrita deste trabalho, abri o livro Nam June Paik: I expose the musics (2023) que tinha adquirido recentemente e logo nas primeiras páginas encontrei uma referência direta. Estas coincidências foram me dando alento para continuar o trabalho.
Tive necessariamente de perceber a tecnologia não como uma oposição à natureza, mas como uma parte integrante da mesma. Apesar de esta poder parecer uma noção simplista, foi o ponto da viagem mais importante para poder começar a criar a componente audiovisual.
“The serious artist is the only person able to encounter technology with impunity, just because he is an expert aware of the changes in sense perception.” (McLuhan, 1994)
Como preservar a poética dos artistas e das obras perante a cultura de entretenimento massificada é um dos desafios das práticas artísticas contemporâneas e sob o qual dedico parte do meu pensamento.
A abstração que se fascina com um vale infinito onde cantam os pássaros, é a mesma abstração que se inquieta com obras de arte interdisciplinares.
A dependência eletrónica é uma condição humana contemporânea. Talvez seja o que me distingue historicamente de Thoreau, mas não tem que ser necessariamente o que me afasta da sua poesis.
“Indeed, artists use, re-purpose and invent electronic media in ways that delight the senses, baffle the mind and offer profound insights to the implications – both positive and negative – of techno culture. (…) artists continue to discover its poetic significance, if not magic. In doing so, they simultaneously humanize and mythologize electronic media, transforming it through artistic alchemy to stretch the imagination, expand consciousness and inspire other to new levels of creativity and invention.” (Shanken, 2009, p.15)
Contextualização do percurso artístico na exploração audiovisual
A minha pesquisa artística passa pela exploração de diferentes possibilidades de comunicação/interação entre áudio e imagem. No entanto, a minha relação com o vídeo surge primeiro que a minha relação com a criação sonora.
A aproximação ao vídeo surge quando adquiri a minha primeira máquina fotográfica. Enquanto ia aprendendo fotografia, fui percebendo as potencialidades do vídeo. Tendo o cinema como importante referência, a informalidade do vídeo e as possibilidades abstratas que se me apresentavam na videoarte foram mais atrativas para mim.
As filmagens que fazia tinham uma relação mais estreita com a fotografia no sentido em que o que procurava eram imagens em movimento numa base abstracta.
Posteriormente comecei a trabalhar a criação /manipulação de vídeo em tempo real. Para esse efeito misturava imagens pré-gravadas com imagens geradas em tempo real através de câmaras ou motores digitais. Esta atividade aproximou-me da música e desde então tenho trabalhado a parte visual de performances musicais.
Devido ao sem número de problemas técnicos que demanda a utilização e articulação de diversos softwares de criação visual, procurei soluções que ao mesmo tempo fossem mais viáveis em contexto de live-performance e me aproximassem de uma fisicalidade distinta e mais interessante do que a interação com o computador.
Comecei por utilizar câmaras analógicas conectadas a mixers de vídeo como o Digital Video Mixer da Videonics ou o Edirol V4 da Roland.
Apesar da baixa resolução, o revivalismo destas ferramentas “vintage”, abriu-me caminho para uma exploração estética mais concreta e entendi novas relações entre o tempo, a criação e a performance ao vivo. A manipulação visível em “tempo real” permitiu-me encontrar diálogos distintos tanto com o som, como com os outros músicos e o público.
No seguimento destas experiências, a pesquisa pelos videogadgets levou-me a descobrir que na década de 1970, Nam Jun Paik inventou, juntamente com Shuya Abe, o Paik/abe synthesizer^[http://medienkunstnetz.de/works/paik-abe-synthesizer/], um sintetizador visual. Após Rutt Steve e Bill Etra contactarem com o sintetizador de Paik, os próprios decidiram criar o Rutt/Etra Scan Processor, um novo sintetizador que desta vez processava/distorcia a fonte de vídeo em tempo real. Curiosamente este sintetizador começou a ser utilizado posteriormente por Paik. ^[“After engineer Bill Etra had experimented with the Paik-Abe synthesizer, he convinced fellow engineer and artist Steve Rutt to work with him on designing a new imaging device. Their Rutt/Etra Scan Processor was able to isolate, animate, and reshape particular elements of the video picture in real time by retiming the image relative to the signal–unlike the Paik-Abe synthesizer, which distorted the entire waveform. Paik, in turn, began making work with the Rutt/Etra video synthesizer, as did Woody and Steina Vasulka.” https://handmadecinema.com/filmmaker/steve-rutt-and-bill-etra/]
Como emulação destes princípios de síntese visual analógica foi desenvolvido o software Lumen – Video Synthetizer – um sintetizador virtual que segundo os criadores “makes it easy for you to create engaging visuals in real time. Use the same process with Lumen as you would with a hardware video synth, but with modern features only software can provide. With a semi-modular design that is both playable and deep, Lumen is the perfect way to get into video synthesis.” ^[https://lumen-app.com]
Apesar das enormes potencialidades de criação e comunicação com outros softwares, esta aplicação que me permitiu desenvolver bastantes conteúdos e experiências, não deu resposta à questão da fisicalidade.
Desta feita, uma marca de sintetizadores de vídeo modular, a LZX industries, que me pareceu estável e com diversas possibilidades de criação e interação, mais especificamente o facto de ser compatível com os módulos de síntese e processamento sonoro^[https://lzxindustries.net/].
Um exemplo das potencialidades destas ferramentas poderá ser demonstrada no seguinte vídeo. O vídeo é o registo de uma performance audiovisual criada com Pedro Pestana, TrenGo! Sound System, no âmbito do MADEIRADiG Festival 2022 em que, com base na relação com o músico, manipulei e misturei as imagens que tinha gravado nos dias antes com síntese gerada em tempo real.
Considero este um bom exemplo da minha abordagem visual na música por ser uma experiência recente que situa a minha pesquisa sobre possíveis relações A/V.
Um outro exemplo foi a performance A/V que desenvolvi com Andrés Malta no âmbito da disciplina de Projecto Criativo no presente Mestrado.
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/zmey6t0qy/desktop.mp4?locale=pt](performance A/V criada com Andrés Malta)
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O vídeo foi a porta de entrada para encontrar na criação sonora, uma possibilidade de expressão que pode operar tanto isolada como na relação com o vídeo.
Depois de experimentar com o meu primeiro sintetizador de vídeo, o Vidiot da LZX industries, a minha realidade "modulou-se" e percebi que, ao invés de trabalhar com um sistema completo e fechado, poderia, fisicamente, adicionar, subtrair e cruzar distintos elementos num mesmo sistema. Essa permeabilidade de recondicionar o sistema e poder, no mesmo ambiente, gerar e controlar áudio e vídeo, fizeram-me começar a trabalhar também com módulos de som.
“Everything has some consciousness, and we tap into that. It is about energy at its most basic level.” (Robert Moog citado em Bjørn, 2021)
O estudo sobre o universo dos sintetizadores modulares levou-me a descobrir mais profundamente Robert Moog, um dos pioneiros na invenção e comercialização de sintetizadores musicais.
A complexificação progressiva dos patchs (termo que remete para a interação construída entre os módulos), através da integração de novos módulos no sistema, demandam um estudo profundo das suas funções e características, assim como, das propriedades físicas e conceptuais do som.
Perceber fisicamente como se complexifica uma onda sonora simples, como se gere, modela e faz interagir com outras fontes sonoras é um exemplo claro de porque se torna interessante a exploração sonora nestes meios.
A síntese modular pode servir tanto como metáfora quanto como ferramenta prática para repensar conceitos filosóficos, destacando o processo, a variação e a interconexão de elementos diversos, em vez de certezas fixas ou estruturas predeterminadas.
O facto de estes sistemas não possuírem uma memória que permita ter pré-configurações exige-me uma atenção especial face às configurações e ligações que estabeleço a cada momento. A fisicalidade proporciona regimes experimentais distintos, o que por vezes pode ser condicionante na hora de ter de fechar ideias, uma vez que é sempre uma viagem que se pode revelar interminável. Consciente dessas limitações, e sob a necessidade de materializar algum trabalho, comecei por conceber a junção do universo modular com as inúmeras possibilidades dos diversos softwares de criação audiovisual. O meu objetivo nesta pesquisa passou por aumentar as possibilidades criativas e tentar cruzar as diferentes potencialidades de cada universo.
Exemplo deste trabalho é o seguinte vídeo onde demonstro um patch desenvolvido no software Max/msp e que articula a criação audiovisual em ambiente digital e analógico.
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/2dicumsudm/desktop.mp4?locale=pt](Patch Max/msp.)
Outro exemplo que considero relevante para a descrição do meu trabalho é a experiência realizada no contexto do Mestrado: "O tempo tem pó”. Neste trabalho explorei as ferramentas de forma promover uma relação direta entre o tempo, o som e a imagem. Escrevi na altura sobre o trabalho: “À medida que as coisas ficam mais rápidas, acumulamos cada vez mais experiências com uma rapidez progressiva. Se a tecnologia poderia ser uma garantia de tempo livre para contemplar, hoje usamo-la como uma ferramenta para nos ocuparmos cada vez mais. O tempo foge-nos pelas mãos e estamos circunscritos ao clique regular do relógio.”
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/1q4ic5htu4/desktop.mp4?locale=pt](“O tempo tem pó” - Experiências A/V)
O meu trabalho com ferramentas A/V modulares tem me permitido estabelecer muitas relações com os temas previamente descritos e encontrar novas formulações para as questões levantadas.
Poderá o sintetizador modular ser uma máquina rizomática?
CRIAÇÃO AUDIOVISUAL
O plano que tracei para a criação do objeto audiovisual foi-se desenvolvendo à medida que reli o Walden ou a Vida nos Bosques e repensava novas formas de interpretar a viagem e as imagens que recolhi.
As imagens reais que tinha não terão interesse artístico se dispostas isoladas. Da mesma forma, nunca foi o meu objetivo criar uma narrativa documental sobre a minha experiência ou um vídeo ilustrativo da obra de Thoreau. Uma vez que quando parti para a viagem já desenvolvia a minha pesquisa concreta de áudio e vídeo sintetizado, sempre imaginei as imagens e sons que recolhi como matéria prima para novas experiências.
Como ponto de partida, associei as imagens e os sons recolhidos durante a viagem, ao lidar com dimensões concretas do real, com a Natureza. Os sons e vídeos sintetizados relacionam-se com tecnologia. A intersecção dos dois universos será então o exercício poético à luz das questões descritas: partir desta dualidade básica para a extrapolar para outras questões ainda por revelar.
De acordo com a experiência prévia, e face ao desafio de coexistir diferentes elementos no mesmo projeto, estruturei o trabalho da seguinte forma:
a) MATÉRIA-PRIMA -Edição dos vídeos e dos sons gravados durante a viagem
b) ÁUDIO – criação sonora através de síntese
c) VÍDEO – junção das imagens gravadas com o áudio e vídeo sintetizado
Matéria Prima
Antes de começar a viagem, sabia que queria filmar mas, naturalmente, não sabia o que iria encontrar. Estabeleci que queria experimentar diferentes coisas e não estar preso a nenhum guião. A câmara seria uma extensão do meu olho sem ter a necessidade de criar quadros emblemáticos sobre a experiência. Queria que os meus movimentos fossem honestos tal como a câmara seria - a beleza do que se encontra é um fragmento de tudo o que se observa, é a seleção intuitiva de um, ou poucos, elemento(s) da realidade que se olham e escutam com outra “duração”.
Certas etapas da viagem não estão registadas em vídeo. Especialmente as partes das cidades. A razão pela qual decidi não gravar vídeo em meios urbanos acontece porque nesta altura estava num processo bastante solitário e quando me cruzava com pessoas, tentava desligar-me da “minha viagem” e estar presente. Se em Washington DC decidi sair com câmara foi talvez uma intuição. Nos restantes momentos dei primazia a estabelecer novas relações e a poder conhecer a cidade a partir da perspectiva de quem a habita. Naturalmente, quando se conhece alguém e se passa bastante tempo com essa pessoa, a câmara não é a coisa mais importante ou relevante de se transportar. A experiência, neste caso, torna-se difícil de registar quando temos que interagir e estar “presentes”.
O registo, seja sonoro ou visual, tem uma natureza que aparenta substituir o presente pela intenção de no futuro rever o passado. Tentei, porém, encarar o vídeo como uma experiência in loco desprovida de futuro. Propus encontrar na câmara um mecanismo de observação curioso, ágil e expressivo.
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Os seguinte vídeos são animações feitas a partir dos livros de ilustrações Zoom e Re-Zoom. (Banyai, 1998a, 1998b). Adquiri estes livros pouco tempo antes de iniciar a viagem e o exercício visual conseguido nestes trabalhos é referido neste momento por ter influenciado a forma como fui capturando as imagens. O zoom foi uma ferramenta intensamente explorada e com a qual consegui criar dinâmicas que de outra forma não conseguiria.
Concluída a viagem, tratei de reunir todas as gravações no mesmo disco e percebi que dispunha de aproximadamente três dezenas de horas de vídeo. Alguma parte dos vídeos eram experiências que se prolongavam devido ao esquecimento de desligar a câmara, ou então, testes que fiz com o rec ligado.
Esses “erros” foram também integrados no processo de edição e no resultado final.
A edição começou então por um primeiro roughcut que ficou com 8 horas e que depois se reduziu para 2 horas e finalmente para cerca de 55 minutos.
Como é visível na imagem, durante este processo, fui sinalizando certas partes que me pareciam marcar certos momentos. Essas mesmas partes resultaram em capítulos temáticos sob os quais tive abordagens sonoras e visuais diferentes.
Seja pelo cansaço que demanda a edição de vídeo, como pela curiosidade de ver estes materiais expostos aos sintetizadores, durante o processo de edição fui também cruzando certos excertos com as improvisações sonoras que ia fazendo. Estas experiências, apesar de fugas à estrutura definida, foram fundamentais para ir percebendo o caminho da montagem. Tal como referido anteriormente, não previa neste trabalho a criação de uma narrativa linear. A minha proposta passou por encontrar núcleos que seriam desenvolvidos isoladamente e só no fim perceberia como estruturar a montagem final, ou seja, a montagem que já comportava todas as dimensões visuais e sonoras.
As várias coincidências que fui encontrando neste processo foram também incorporadas de formas mais ou menos subtis.
Thoreau partiu para os bosques a 4 de Julho de 1845 e a 4 de Julho de 2020 chego a Washington DC, poucos dias antes de chegar a Walden. Sem me aperceber entrei na capital dos EUA no dia mais importante do calendário dos EUA. Em vez de chegar ao bosque, cheguei a uma multidão que comemorava, entre outras parafernálias, com muito fogo de artifício. Apesar de na cronologia este momento se situar já na parte final da viagem, decidi começar o vídeo com uma cena filmada neste dia.
A lógica com que dispus as imagens cria-se a partir da exploração, mais ou menos eficaz, dos vários conceitos e tensões expostas ao longo deste documento.
Áudio
Como referido, à medida que ia avançando com a edição do vídeo, ia improvisando livremente sobre as imagens como forma de estudar patchs e encontrar dinâmicas entre o áudio e a imagem. Se inicialmente tive a ideia de criar um universo sonoro que fosse totalmente proveniente da síntese eletrónica, ao deparar-me com o som gravado no vídeo, percebi que seria mais interessante cruzar ambas as fontes.
Certas partes do vídeo sugeriram então que o som fosse construído a partir do áudio gravado posteriormente processado pelas máquinas modulares.
Resolvi gravar certas frases do Walden ou a Vida nos Bosques e processá-las de forma a com elas criar pequenas referências em que só algumas palavras ficassem audíveis e adicionando novas texturas à criação sonora. Para este efeito utilizei um módulo de síntese granular ^[Quando via o vídeo de demonstração deste módulo, na descrição do seu efeito de reverberação, é referido que o mesmo foi inspirado nos fenómenos acústicos da cabana de Thoreau. - https://www.youtube.com/watch?v=1K89l_bgTe8].
O sincronismo é uma das primeiras características que pensamos quando prevemos áudio e imagem juntos. Nesse sentido, o meu trabalho inicial passou por experiências que criassem uma regularidade temporal entre as imagens e o som. Através de sincronização MIDI, criava padrões rítmicos que controlavam tanto o vídeo como o som.
Estas experiências que podem ser vistas no seguinte vídeo que conta também com uma tentativa de reinterpretação do Colour Organ.^[“A colour organ is a device for the projection of areas of colour cued in a musical manner, often from a console similar to a musical instrument, most typically a keyboard.(…) Louis Bertrand Castel’s first theoretical writing on the colour organ appeared in 1725, and acknowledges a debt to Athanasius Kircher’s popularisation of the magic lantern (1646) and Isaac Newton’s speculations aligning the spectrum to the diatonic scale (1704). Though he had intended only to write of the possibility of a clavecin oculaire (ocular harpsichord), a sceptical reaction prompted experiments in actually constructing the device.” (Collins & Escrivan Rincón, 2017, p.124)]
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/22ziyrznkl/desktop.mp4?locale=pt](“Experiências de sincronismo entre som e vídeo)
O facto do software de criação e gravação sonora já ter a funcionalidade de adicionar uma faixa vídeo para referência, possibilitou-me a conseguir criar o som em tempo real. Assim sendo, ao criar um loop em determinada região temporal, podia ver o vídeo em tempo real e sobre o qual improvisei repetidamente até ter um resultado satisfatório.
Essas improvisações gravadas em multitrack foram sendo colocadas na timeline para testar a sua junção. Muitas delas foram fundamentais para depois encontrar novas soluções. Tanto através da reorganização das faixas gravadas ou, na tentativa de recriar os sons gerados, sendo difícil recriar a mesma complexidade sonora, encontrei novas dinâmicas que sugeriram novas interações ou caminhos diferentes.
“The modular effect is, as I see it, a state of constant questioning and rearranging of the status quo by breaking it down again and again into smaller units of inquiry. Through this process, new forms of organization, and ultimately expression, can be created out of alternate combinations of previous arrangements. It’s not about the erasure of earlier structures, it’s about re-combining the pieces in service of possibility, which is to me, the essence of synthesis.” (Bana Haffar in Teboul et al., 2024, p.226)
Conceptualmente procurei diferentes possibilidades sónicas que ora se pautam por um ritmo definido, ora se desenvolvem sob os conceitos de duração e velocidade.
Vídeo
A relação estabelecida entre o vídeo e o som acontece de uma forma fluida que oscila entre a busca por relações síncronas mas também entre um diálogo subjectivo entre as partes. O facto de gravar o áudio diretamente dos sintetizadores, à medida que ia reproduzindo as secções do vídeo já editado, ajudou-me a encontrar uma certa fluidez que me permitiu estabelecer relações mais claras, ainda assim subjetivas, com as imagens. Desta feita, a pós-produção realizou-se apenas no domínio da mistura e de ligeiros ajustes temporais.
Os sons que me ocupam a imaginação nem sempre se coadunam com o espaço físico. Ver uma árvore e imaginar fortes sintetizadores é diferente de estar numa cidade e solicitar à imaginação passarinhos que atenuem o ruído dos carros.
A última parte deste processo começa na visualização do vídeo cruzado com o áudio sintetizado. Após ter uma noção de como funciona na sua globalidade, sinalizei certas partes que me sugeriam mais dinâmicas visuais de forma a criar uma terceira possibilidade interpretativa. Além da correção de cor e de diferentes efeitos estáticos, gravei depois novas interações entre o áudio e padrões visuais.
Neste processo de sincronização dos módulos de som e de vídeo recorri a LFO´s (Low Frequency Oscilators) e Envelope Followers para criar velocidades e dinâmicas comuns entre as imagens e os sons.
Além do sintetizador de vídeo, e processador de efeitos, utilizei o software Resolume para a criação de outros efeitos.
No seguinte vídeo mostro um pouco deste processo de criação:
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/fqug57dnk/desktop.mp4?locale=pt](Descrição do sistema de criação audiovisual)
Tendo a estrutura montada já com as três camadas a que me propus: imagens/sons gravados, áudio sintetizado e vídeo sintetizado; o passo seguinte foi entender como preparava o objeto para ser apresentado em multi-tela.
A opção da multi-tela existe por dois principais motivos:
1- De acordo com as noções de cinema/vídeo-expandido expostas no início deste documento, a separação do vídeo pelo espaço permite uma nova camada relacional entre o objeto e quem assiste. Decidir o que se vê, mesmo numa única tela, acontece sempre. No entanto, quando o mesmo objeto apresenta duas versões diferentes ou complementares, esta decisão tem um impacto físico. O espaço é então equacionado na experiência.
2- As duas telas remetem para as dualidades descritas nesta experiência. A possibilidade de expor duas imagens diferentes/complementares/iguais ao mesmo tempo motivou-me a considerar a apresentação desta forma. A separação das duas telas não é regular, sendo que por vezes a mesma imagem ocupa as duas telas, outras vezes a mesma imagem é dividida pelas duas telas e em outras ocasiões imagens diferentes completam a experiência.
O objecto A/V foi criado para ser exibido em formato site-specific onde além dos elementos presentes no vídeo, em cada apresentação está pensada uma espacialização visual e sonora distinta. Esta opção surge porque acredito que, apesar do vídeo poder sobreviver isoladamente em diversas formas de reprodução, acredito que a experiência de visualizar este vídeo num ambiente coletivo com o som e a imagem calibrados adequadamente, garantem uma imersividade que contribui para uma experiência sensorial diferente.
Resultado Final
O resultado deste processo poderá ser visto na sua totalidade em apresentações ao vivo. Para cada apresentação irei trabalhar a parte visual, assim como o som, para o espaço e de acordo com as experiências anteriores.
Assim sendo, no seguinte vídeo, existe uma versão completa de todo o vídeo preparado para duas telas com o misturado. Este vídeo será a base de todas as experiências que se vão desenrolar.
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/2plb9ju2hk/desktop.mp4?locale=pt](Base sonora e visual)
A título de exemplo, mostro uma simulação de multi-tela em que o som e as imagens se encontram com uma segunda camada de processamento.
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/2jqumvl5bj/desktop.mp4?locale=pt](Experiência multi-tela com processamento sonoro e visual)
O seguinte vídeo é um excerto gravado da apresentação pública do trabalho. Aconteceu na Sala Preta da ESMAE no dia 23 de Julho de 2024.
!educastVideo[https://educast.fccn.pt/vod/clips/24xozgif4v/desktop.mp4?locale=pt](Excerto da apresentação pública)
Conclusão
A 15 de Junho de 2021 iniciei a viagem e a 15 de Junho de 2024 entreguei este documento finalizado.
Tenho consciência que este projeto tem uma dimensão pessoal envolvida que poderá ser difícil de aceder. A experiência de abstração do vídeo conta-me uma narrativa pessoal mas que deduzo poder não ser transmissível.
Existe um processo de redução constante. Essa redução é necessária para poder partilhar alguma ideia, conceito ou experiência. Sem redução, seria necessário que todas as pessoas vivessem connosco o tempo em que estamos aborrecidos, em que nada se passa. São esses os momentos que dão sentido aos pequenos segundos que significam a experiência, que nos elevam enquanto poetas, que, aparentemente, nos concedem a capacidade de sermos únicos e originais – aparente sensação, todavia.
Ainda assim, considero que as tensões evocadas estão explícitas e implícitas nas relações audiovisuais.
Todo o universo de referências literárias e artísticas citado, assim como os conceitos apresentados e as experiências reais, influenciam direta ou indiretamente a minha criação. Tendo uma natureza fundamentalmente experimental, o meu processo criativo trata de testar esses mesmos conceitos de uma forma prática em que a serendipidade, é uma das maiores recompensas nesta minha abordagem.
Considero que os conceitos de rizoma e sinergia são, na verdade, conceitos abertos e em desenvolvimento. Servem o propósito da criação artística mas também podem ser reveladores de novas formas de nos relacionarmos com o exterior. São, nesse sentido, termos utópicos por sugerirem um caminho. No entanto, nem sempre é possível definir claramente o ponto ou a linha onde os conceitos, as imagens e os sons se cruzam.
Tendo entrado no Mestrado em Artes e Tecnologias do Som com o intuito de aprofundar conhecimentos sobre som, as relações que promovi entre os elementos audiovisuais resultaram de diferentes experiências, onde a coerência que pretendi encontrar advém da diversidade de influências, técnicas e vivências.
Tanto a parte autoetnográfica da viagem, como todo o universo conceptual, apesar de implicitamente, estão presentes na experiência A/V. Tal como este documento, que faz também parte do processo criativo e que é responsável por uma reflexão que gera novas questões para o trabalho futuro.
Almejar criar um sistema horizontal no qual imergimos e em que os sentidos se misturam e nos trazem sensações inauditas, será a minha expectativa com esta experiência. O universo conceptual é um ponto de partida ético e sob o qual oriento as minhas experiências. Muitas vezes o resultado prático, por mais que deseje, não contempla todos os objetivos que lhe estavam destinados, ou, pelo menos, não se manifestam de forma tão visível.
"Estabelecer novas codificações é uma necessidade, é a urgência de encontrar os termos mais recorrentes e substituí-los por outros novos" (Guy-Marc Hinant (2022) (Trad. Livre) pp. 56-57)
Considero que as características poéticas poderão ser analisadas a partir do exercício da liberdade que o ou a artista tem com o seu interior e com o Mundo. A qualidade e estabilidade da ponte entre estas duas instâncias é o que permite ao artista desprender-se de si e abrir terrenos convidativos à interação de outras pessoas.
O desenvolvimento de novas sensibilidades é um exercício que alimenta relações internas e externas que contribuem para um desenvolvimento social e humano. O exercício de abstracção e subjetivação inerente à experiência estética/contemplativa é uma possibilidade que pode contribuir para a criação dos tais sistemas rizomáticos que, na associação do conhecimento com a experiência, recusam a competitividade em detrimento da cooperação.
O uso de tecnologias eletrónicas em contexto artístico é colocado nesta proposta como uma forma de desenvolver uma consciência crítica relacional. A interação resultante de diferentes relações sensoriais possibilita a abertura de campos abstratos que alargam o autoconhecimento do indivíduo e fomentam um contato cooperativo com o exterior e com as outras pessoas.
É no cruzamento das diferentes vozes e imagens que podemos encontrar possibilidades que revelem novos caminhos ao invés de autoritariamente nos encerrarmos em conceitos cristalizados.
Assim, a minha experiência sobre esta viagem materializa-se tanto no domínio da linguagem oral e escrita como na experimentação visual e sonora.
No futuro, prevejo continuar este trabalho e transportá-lo para uma dimensão performativa onde serão operados os elementos audiovisuais em tempo real a partir da “máquina modular”. Esta dimensão performática é um desafio ao qual me quero propor por considerar que a dimensão colectiva da experiência poderá ser reveladora de novas relações sensoriais, rizomáticas e contemplativas.
Se o eremitismo em 2021 era uma necessidade de fuga de uma realidade muito difícil de digerir, em 2024, o eremitismo é uma necessidade de criação artística como forma de digerir a realidade.
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