Projeto artístico do Mestrado em Música - Interpretação Artística - variante Jazz (bateria), ano letivo 2022/23, realizado por Acácio Cardoso e orientado por Paulo Perfeito e Marcos Cavaleiro.
Introdução
Resumo
O objetivo do trabalho que aqui se apresenta, correspondente a um projeto realizado para a obtenção do grau de Mestre em Interpretação Artística vertente Jazz Instrumento Bateria e foca-se em dois pontos importantes:
- A elaboração de uma obra sonora constituída por oito temas da minha autoria apresentada em formato áudio com a seguinte instrumentação: Sax Alto, Piano, Contrabaixo e Bateria e que cuja apresentação pública e lançamento discográfico serão realizados pelo carimbo Associação Porta Jazz. A data da primeira audição pública e posterior defesa do presente trabalho, será realizada no dia 29 de novembro, pelas 21:30 no Auditório da FEUP.
- Reflexão critica de todo o processo criativo utilizado na construção da obra sonora, documentada numa perspetiva auto-etnográfica. Neste contexto, será elaborada uma memória descritiva dos principais momentos do processo:
- Processo composicional.
- Construção do objeto (incluindo os ensaios como fator essencial para o desenvolvimento criativo das composições).
- Recolha e documentação audiovisual desses mesmos ensaios.
- Análise crítica de todos os processos criativos.
Agradecimentos
- Em primeiro lugar gostaria de agradecer aos meus já falecidos pais e à minha tia Mimi por me terem sempre apoiado em vida e me terem tornado no músico e ser humano que sou.
- Agradeço à minha filha Sara e ao meu enteado Tiago por terem sempre acreditado nos meus sonhos. Uma gratidão muito especial à minha esposa Marina por tudo o que de bom significa na minha vida. Sem a sua ajuda e dedicação, nada deste trabalho seria possível.
- Agradeço também à ajuda incondicional dos meus sogros e avó Piedade.
- Agradeço ao meu orientador professor Doutor Paulo Perfeito pela sua orientação, interesse e dedicação. Agradeço ainda ao meu coorientador professor Marcos Cavaleiro pela sua valiosa contribuição, conselhos e comentários técnicos em relação à bateria e à musica em geral.
- Não posso de deixar de agradecer ao professor Doutor Rui Penha, por todo o apoio as questões relativas ao programa Obsidian utilizado neste meu trabalho.
- Agradeço ainda ao meu amigo Patrick Brennan que me mostrou outros caminhos possíveis de percorrer na musica e ao músico fantástico Jordi Rossi pela sua participação especial que tanto influenciou este meu trabalho.
- Expresso aqui também um especial agradecimento às minhas amigas Janeca, Cristina e Lala da academia de música Valentim de Carvalho, por todo o encorajamento e disponibilidade em ajudar.
- Agradeço ainda à professora Doutora Luísa Pais Vieira, à Professora Doutora Raquel Pires e à professora Catarina Ribeiro por todos conselhos e comentários.
- Agradeço ainda à minha amiga Doutora Graciete Teixeira por toda a ajuda e disponibilidade na concretização deste trabalho.
- Agradeço ao Vicente Mateus, que foi incansável na realização e edição dos vídeos presentes na documentação do processo criativo, bem como pelo facto de o admirar imenso como artista e criativo e também pelo fato de ser um ser humano espetacular e que eu tenho o privilégio de conhecer e de usufruir da sua arte e amizade.
- Agradeço ao Miguel Guerra que foi o responsável pela gravação áudio, mistura e masterização das composições apresentadas neste trabalho em formato de CD. Convidei o Miguel Guerra para gravar, misturar e masterizar este trabalho discográfico, pois desde que o conheci como profissional de gravação que fiquei rendido ao seu enorme talento. Consegue de uma forma especial ir ao encontro de essência humana que eu pretendo captar na minha musica através do seu conhecimento aprofundado tecnológico e sensibilidade humana fora do vulgar.
- Por fim um agradecimento muito especial aos músicos participantes neste trabalho: Dalila Teixeira, João Guimarães e Gonçalo Sarmento sem os quais este trabalho seria impossível de realizar.
- Agradeço também a todos aqueles que diretamente ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho. A todos um grande bem haja.
Metodologias
Sendo que o foco deste trabalho é a pesquisa artística, a metodologia adotada será o Modelo de Documentação de Pesquisa Artística da ESMAE. Para tal, serão realizados:
- Recolha e documentação audiovisual dos ensaios com vista à construção da memória descritiva dos processos composicionais.
- Recolha e documentação audiovisual de todas as influências relevantes na origem das oito composições em estudo.
- Análise crítica dos processos composicionais à priori (do material pré-concebido) e à posteriori (resultado da interação e criatividade coletiva dos intervenientes em contexto de ensaio e subsequentemente em contexto de performance).
- Como conclusão, será feita uma análise dos resultados obtidos no fim do meu projeto. Esta analise tem como objetivo perceber de que forma os resultados apurados serão conclusivos ou se deixam futuros desenvolvimentos em aberto.
- Realização discográfica das oito composições em estudo.
- Apresentação pública e defesa do projeto artístico.
Motivação
Ao longo dos meus 40 anos como performer, foi-me dada a oportunidade de recolher conhecimentos musicais dos mais variados contextos e estilos musicais na área do jazz. Toda esta recolha de conhecimento contribui em grande parte para a minha evolução na música e no instrumento. Porem, sempre o fiz como sideman, nunca tendo tido tempo e disponibilidade para desenvolver o meu próprio grupo, bem como as minhas próprias composições. O facto de ter surgido a possibilidade de poder vir a fazer este Mestrado em Interpretação Artística - Instrumento Bateria/Jazz, abriu-me uma janela de oportunidades através da qual poderei partilhar os conhecimentos adquiridos com o publico em geral, os meus alunos e toda uma comunidade artística e académica. Consequentemente, senti-me bastante motivado a escrever a minha música, montar o meu projecto em formato de quarteto, que chamei de - “Samurai Magazine” e dar início como líder, à experiência musical que espero vir a ser gratificante e relevante do ponto de vista artístico-científico.
Para este quarteto escolhi o sax alto, piano, contrabaixo não só pela natureza tímbrica dos instrumentos, mas também pelo facto de terem a capacidade de exercer funções vitais na minha forma de compor. Funções essas em que se destacam movimentos rítmicos complexos e sólidos suportados por harmonias simples onde a melodia poderá ter um papel de contorcionismo no espaço bem como na forma.
No sax alto convidei o saxofonista João Guimarães pelo facto do seu potencial como improvisador vir enriquecer os capítulos destinados à improvisação. A sua forma de improvisar é muito aberta e lírica, já nada presa aos clichés habituais da linguagem mais tradicional do jazz, o que o faz distinguir-se dos outros saxofonistas na cena musical do Porto. Desta forma, a sua maneira de improvisar vem acrescentar uma perspetiva de modernidade e de futuro às minhas composições. Por outro lado, a sua simpatia, boa disposição, o seu sentido de humor e um aguçado sentido criativo vem contribuir para um ambiente de trabalho super produtivo, contagiando assim os restantes elementos.
No contrabaixo escolhi o jovem talentoso Gonçalo Sarmento pelo seu sentido muito apurado de ritmo e groove. Para além de uma afinação irrepreensível no instrumento, é também um bom leitor e um improvisador com um discurso bastante moderno e muito fora do vulgar, qualidades estas que o distinguem dos seus pares e acrescentam à minha composição algo de muito sólido e eficaz. Como companheiro é uma pessoa em quem se pode confiar, sempre disponível para ajudar no processo criativo e com muita sede de aprender mais. A sua simplicidade e humildade beneficiam todos os elementos do grupo refletindo-se esta energia nas minhas composições e na performance coletiva.
Por fim, a escolha da Dalila Teixeira para o piano/sintetizador deve-se ao facto de as suas características e raízes bem fortes serem provenientes da música erudita. Apesar da sua formação não ter sido a da música jazz, a sua importância musical manifesta-se na sua imensa capacidade de interpretação das partes escritas bastante exigentes para piano, com uma precisão de excelência fazendo assim com que a minha ideia em termos de orquestração se concretize de forma o mais fiel possível. A sua curiosidade pelo universo musical do jazz, no qual a improvisação é um elemento em destaque, torna-a uma intérprete com novas ideias musicais fora dos clichés habituais, do qual o grupo e a minha composição beneficiam imenso. Por sua vez, os seus momentos de improvisação nas composições surgem de uma forma inesperada no contexto puramente jazzístico. Isto faz com que surjam novas texturas e ambientes inéditos em que sente a fronteira entre a música clássica e a música jazz muito mais ténue. A sua boa disposição bem como a sua vontade saber mais, contagiam o grupo de trabalho de uma forma super interessante e altamente produtiva.
É perfeitamente lógico que as minhas composições, com a mesma orquestração, mas executada por instrumentistas de características diferentes e seguramente com personalidades distintas, levaria a minha música para lugares que, não sendo melhores ou piores, seriam certamente diferentes do que tinha inicialmente idealizado.
Estado da Arte
Em termos de influências criativas e neste meu projeto de investigação, devo salientar duas vertentes importantes na construção das minhas composições. A primeira é inteiramente de caracter filosófico e espiritual e a segunda puramente de caracter técnico e científico.
A vertente espiritual e filosófica
Na vertente espiritual e filosófica o nome do meu grupo "Samurai Magazine" bem como os nomes das oito composições a serem objeto de estudo neste projeto - 1ª Bushido, 2ª Makoto, 3ª Chugi, 4ª Yuki, 5ª Reigi, 6ª Seigi, 7ª Jin e a 8ª Meiyo -, sofrem uma grande influência oriunda da cultura proveniente do Japão no século X, em que os guerreiros Samurais e a sua conduta, o Bushido, são as principais fontes da minha inspiração.
Como me parece óbvio de salientar, estas influências serão sempre de carater abstrato e isentas de qualquer juízo de valor. Fazem todo o sentido para mim, pois nelas senti um forte motivo de inspiração criativa que me ajudou a desenvolver pontes entre o abstrato artístico e a vertente mais analítica das minhas composições e projeto.
A partir do momento que descobri e pesquisei mais acerca da conduta espiritual e filosófica dos Samurai, fui criando analogias entre os seus códigos de honra e ideologias, e a música. O estudo da música, bem como tudo o que isso implica e todo o universo de conduta que os próprios músicos adquirem no seu desempenho pessoal e artístico revela conexões com o a praxis destes guerreiros.
Segundo o autor Yamashiro (1964) do livro "Pequena História do Japão", Samurai significa literalmente "aqueles que servem ". O nome Samurai aparece pela 1ª vez a ser usado num contexto puramente militar no Japão feudal do século X. No início, o termo Samurai era atribuído a homens que ascendiam à capital para prestar serviço de guarda. Porem, com o decorrer do tempo, o termo começou a designar um militar que servia qualquer senhorio poderoso.
Samurai ou "Bushi" que significa guerreiro, como também eram conhecidos, foram famosos pela sua bravura, técnicas marciais, código de honra e pelo espírito inabalável perante a morte. Esta reputação é devida a um código de ética e conduta, seguido e vivido pelos guerreiros Samurais conhecido como "Bushido".
Segundo a JKA-Portugal (Japan Karaté Association-Portugal) literalmente traduzido, Bushido significa "Caminho do Guerreiro", sendo "Bushi" igual a guerreiro e "do" igual a caminho. O ideograma para caminho em Japonês segundo a JKA-Portugal é equivalente ao carater chines "Tao" e exprime o conceito filosófico de absoluto. Este conceito traz a ideia de origem, princípio e essência de todas as coisas e ainda hoje é presente nas artes marciais e no espirito cultural do povo Japonês, sendo baseado em sete princípios essenciais:
- Seigi - A decisão correta e retidão.
- Yuki - Bravura e heroísmo
- Jin - Compaixão e benevolência para com tudo
- Reigi - Cortesia e ação acertada
- Makoto - Veracidade e absoluta sinceridade
- Meiyo - Honra e glória
- Chugi - Devoção e lealdade
Tentando explicar a analogia entre a cultura Samurai e a comunidade musical, creio não ser muito difícil sentir que todo o treino e dedicação Samurai encontram paralelo na dedicação de um músico talentoso e sério que exibe a vontade de fazer mais e melhor. Desde a pratica das artes marciais, o aperfeiçoamento técnico do manuseio das suas armas como a Katana, Wakizashi, Kodashi podem ser bem comparáveis ao treino rigoroso e persistente que o domínio de um qualquer instrumento musical.
Numa perspetiva filosófica e espiritual, penso que um músico para ser realmente excelente tanto no domínio do instrumento musical como ser humano em constante processo evolutivo, deve almejar e praticar todo este espírito guerreiro Samurai, mesmo sendo muitas das vezes praticado de uma forma inconsciente. Numa perspetiva meramente direcionada para a interpretação artística, faz todo o sentido que os nossos senhores feudais sejam realmente o público, o qual nós tentamos sempre servir com o máximo de lealdade, honra, absoluta sinceridade, cortesia, compaixão, bravura e retidão atravéz da nossa música
Desta forma, portanto, todo este universo Samurai desempenhou uma forte inspiração na minha maneira de sentir e criar todo este trabalho de composição.
A vertente técnica e científica
Na vertente técnica e científica, as minhas influências vão desde os princípios do Jazz em New Orleans às influências contemporâneas do compositor americano Patrick Brennan. Destaco o estilo musical New Orleans' "Second Line" Drumming como inspiração base para a minha composição orquestrada para a bateria, pois deste estilo surgem as primeiras técnicas aplicadas ao instrumento e toda a sua respetiva evolução até aos dias de hoje, que terei oportunidade de falar e exemplificar à posteriori neste trabalho.
Toda a minha composição e em particular a performance enquanto baterista, tem uma forte influência do estilo New Orleans' "Second Line" Drumming, pelo que será de grande relevância para a minha investigação o estudo e análise deste mesmo estilo.
Segundo Schuller (1968), o estudo das influências do estilo musical New Orleans' "Second Line" Drumming no Jazz Moderno constitui um terreno com poucas referências, mas de importante relevância. Tal deve-se ao facto do estilo musical Jazz (no qual o estilo “Second Line” Drumming se incluí), ter pouco tempo de existência e o seu estudo académico se encontrar ainda em estado algo embrionário. Apesar de haver muitas fontes sobre Jazz: revistas, livros romanceados e artigos de opinião, nem todos são de carácter científico, o que limita a escrita devidamente referenciada, mas justifica também o seu estudo (Schuller, 1968). Schuller (1968) foi presidente do New England Conservatory of Music em Boston e Trompista na Metropolitan Opera Orchestra de Nova Yorque e tocou com duas importantes referências da história do jazz: Dizzy Gillespie e Miles Davis. Schuller foi o autor da obra Early Jazz-Its Roots and Musical Development (1968). Schuller (1968) considera e demonstra, através dos estudos realizados para este livro que, com base na análise histórica e musical do Jazz e os seus antecedentes Africanos, é agora possível definir com bastante precisão essa relação. Neste livro, são mencionados aspectos históricos e particularidades da música dos escravos negros, desde as suas práticas ancestrais, que tinham lugar Nova Orleans numa localização especifica chamada Congo Square, desde meados do século XVIII, passando pelo advento do “Second Line” (1890-1910) até aos inícios do Jazz.
Ainda segundo Schuller (1968) a sincopação é a forma mais directa que um músico tem de enfatizar os tempos fracos. Na música africana, o Negro, através do seu dom natural para as acentuações em contratempo musical, foi capaz de realizar três coisas conhecidas como “swing”, que se manifestam ainda hoje no jazz; reconfirmou a supremacia do ritmo na hierarquia dos elementos musicais; encontrou uma forma de manter a qualidade ou “democratização” dos impulsos rítmicos, combinando estas duas características com a sua necessidade de conceber todos os ritmos como “melodias rítmicas”. Manteve, assim, um continuum básico e autopropulsor interno na sua música (Schuller, 1968). Será baseado na necessidade de conceber todos os ritmos como "melodias ritmicas" que o processo de criatividade referente às minhas composições neste trabalho terá maior incidência. Segundo o autor, na forma de viver dos Negros Africanos, as palavras e os seus significados estão relacionados com sons musicais. É comum que a forma de se tocar tambor na música africana, seja uma forma original de linguagem de sinais sonoros. Basicamente a linguagem funciona apenas em conjunto com o ritmo. Toda a atividade verbal na vida social quotidiana, a magia ou a religião, é ritmada. Esta referência, Early Jazz-Its Roots and Musical Development, de enorme importância na minha investigação, determina as ligações parentais entre as características idiomáticas da música africana e o estilo “Second line”. Desta forma, permitir-me-á caracterizá-lo e identificá-lo como influenciador importante de outros estilos de Jazz como o Swing, o Bebop e o Jazz Moderno.
Para um melhor entendimento da aplicação destes rítmicos de origem africana no estilo “Second Line”, destaca-se o livro New Orleans Jazz and Second Line Drumming escrito por dois bateristas importantes no estilo “Second Line”, Herlin Riley e Johnny Vidacovich, em coautoria com o entrevistador, editor e produtor cinematográfico na área do Jazz, Dan Thress. Este livro, para além de conter em CD exemplos do estilo “Second Line” tocados pelos autores, contém entrevistas e depoimentos de importantes bateristas na história do Jazz ligados às raízes culturais de New Orleans como Baby Dodds, Vernal Fournier, Ed Blackwell, James Black, Freddie Kohlman, Smokey Johnson, David Lee e o baixista Biil Huntington (Riley, Vidacovich, & Thress, 1995). Segundo Herlin Riley, o estilo “Second Line” Drumming é um estilo musical no qual a sua instrumentação consiste no uso de snare drum e de bass drum no contexto de parada. A sua origem leva-nos aos finais do século XIX, durante a reforma do Sul dos Estados Unidos da América. Este estilo era usado para celebrações de caracter religioso e social da comunidade negra de New Orleans. Nesta época, segundo o mesmo autor, quando um membro desta comunidade falecia, era costume realizar-se um cortejo fúnebre acompanhado por uma Brass Band. Na primeira fase, em que o cortejo se dirigia em marcha lenta para o cemitério, o primeiro grupo de pessoas eram os familiares do falecido e logo atrás seguia o segundo grupo constituído pelos amigos, vizinhos e a Brass Band que tocava uma marcha lenta de caracter fúnebre. No regresso do cemitério, a Brass Band passava a liderar o cortejo e tocava uma música mais rápida com o objetivo de celebrar o facto do falecido ter ido para o paraíso. Pelo facto da banda, no início do cortejo, se encontrar no segundo grupo de pessoas ou “line”, este estilo de música mais rápido e efusivo passou a ser identificado como “Second Line” drumming (Riley, Vidacovich, & Tress, 1995).
Um dos músicos mais influentes nas composições que servirão de objeto de estudo neste trabalho foi o saxofonista e compositor Patrick Brennan
Tive o privilégio de estudar, tocar e mais tarde gravar o seu Cd "Which Way What" com a colaboração do contrabaixista Nova Iorquino Rachiim Ausar-Sahu. A sua música plena de novos desafios, permitiu-me ter os primeiros contatos com compassos irregulares, o que na altura era um pouco novidade, pois toda a música que tocava era focada no jazz mais tradicional em compassos de 4/4 ou 3/4.
Para além desta nova realidade, todo o processo criativo utilizado pelo Patrick nas suas composições era inovador, incluindo liberdade no tratamento formal (fluidez na sequência nas secções formais da obra) bem como a forma utilizada na secção dos solos (o contrabaixista passava de uma secção da musica para outra aleatoriamente, sem que houvesse qualquer associação com a continuidade lógica sequencial usada na exposição, implicando assim uma reação rápida e espontânea para o solista bem como para mim). O resultado musical dos solos neste contexto puramente inovador, quebrando os parâmetros tradicionais do jazz, resultava numa música muito mais fresca e interessante no ponto de vista da interação solista/secção rítmica assim como uma constante imprevisibilidade, tanto para o publico como para nós.
Este momento na minha carreira foi transformador e abriu-me novos horizontes de possibilidades que me viriam a ser muito úteis na minha forma de compor e de tocar até aos dias de hoje. Posso dizer que a minha formação musical se divide em duas importantes partes: o anterior a Patrick (“Second Line” Drumming) e o pós Patrick.
Vivendo eu nessa época em Viseu e o Patrick em Lisboa, e não existindo os meios tecnológicos que existem agora, a nossa forma de comunicar e fazer avançar o processo criativo da sua música, era a carta escrita em papel, onde algumas indicações de carácter técnico eram mencionas com o propósito de eu as estudar, entender, melhorar e por fim pô-las em prática nos ensaios e concertos.
Devo dizer que estudei e toquei a sua música durante os 8 anos em que ele se fixou em Portugal e que sem duvida, a sua musica, ainda se mantêm como forte influência na minha composição.
Composição
Composição nº 1 - Bushido - "O caminho do guerreiro".
Procurei neste tema representar, através da música, o que será para mim o Bushido - "O caminho do Guerreiro" - utilizando para isso duas secções bem diferentes do ponto de vista rítmico e melódico, mas completamente interligadas entre si através de uma mesma curva de intensidade, como se de um caminho se tratasse. Pensei numa introdução livre antes do tema ganhar forma e tempo constante, tentando assim representar o que seria o início da criação de um trajeto. Como qualquer caminho que acaba por mostrar uma direção e um propósito a cumprir, este tema foi pensado e organizado ritmicamente com a função bem concreta de nos proporcionar, através do ritmo intenso e sincopado um caminho a percorrer bem definido e organizado.
Para que a consigamos interpretar devidamente esta composição, podendo assim atingir os resultados pretendidos, estamos obrigados à procura e prática dos propósitos samurais e seus códigos de honra, através da disciplina interior. Resultados estes que são, nada mais nada menos, que o sentido de missão comprida através da disciplina e rigor que a execução deste tema nos exige como musicos/samurais.
No workshop em que participei em Madrid em 1988, no qual estudei com o baterista Nova Yorquino Adam Nussbaum, o guitarrista John Abercrombie, o pianista Jim McNealy, o saxofonista Jerry Bergonzi e o contrabaixista Mike Richmond, tive a honra e o privilégio de ter como "colega de carteira" o baterista de jazz, agora imensamente reconhecido a nível mundial, Jordi Rossi.
Já neste workshop, Rossi distinguia-se dos demais colegas pelo seu avançado sentido de ritmo e técnicas usadas, sendo de notar a sua forma característica de interpretar as even 8th's. Muito mais tarde e já fazendo parte do trio do pianista de renome mundial Brad Mehldau vim a reconhecer a sintaxe característica destas even 8th's de Rossi nalgumas das composições do álbum " The Art of Trio Volume Three - Songs" com o contrabaixista Larry Grenadier.
Na tentativa de perceber quais as suas influências musicais, de forma a obter estas even 8th's que lhe são tão características, tentei contactá-lo por e-mail sem sucesso. Não desisti, pois desistir não se coaduna com a minha personalidade e, consegui por fim encontra-lo nas redes sociais, mais propriamente no Facebook, resultando esta conversa que de seguida passo a apresentar:
Pelo facto desta imagem do texto na página do Facebook não ser suficientemente legível, passo a transcrevê-lo abaixo:
Soy Acácio Salero, baterista de Oporto/Portugal y fui una vez tu colega en el taller hace muchos años en Madrid con Adam Nussbaum... por supuesto no me recuerdas.
En este momento, yo y Marcos Cavaleiro estamos enseñando batería en el curso de jazz en ESMAE - Universidad Superior de Música y Artes aquí en Oporto. A continuación estoy en el segundo año de un máster en interpretación artística/jazz. En el recital de fin de curso, tendré que hablar de las influencias que tiene mi composición original... hay muchas, por supuesto, pero en particular una de ellas es la forma en que utiliza y siente las 8ª notas en sus composiciones, especialmente en el álbum Songs: The Art of the Trio Volume Three. Sé que en los talleres que impartes sueles hablar de tus influencias de la música brasileña en combinación con el flamenco dando como resultado la forma tan especial en que interpretas las 8ª notas.
Podrías escribir unas palabras sobre este tema para poder hacer referencia a ti en mi tesis de maestría.
Muchas gracias por su especial atención.
Saludos cordiales
Acácio Salero
Hey Acácio. Gracias por tu interés. No sé muy bien cómo escribir sobre este tema así sin contexto. Por mi siéntete libre de escribir tu interpretación de las ideas que tengas sobre el tema o lo que recuerdes. Quizá puedes decir que la idea de tocar 8ths es una abstracción. Todo lo que tocamos es lenguaje. Es verdad que yo he desarrollado mi lenguaje con elementos de Flamenco, Samba, Rumba Afro-Cuban, Fusion, Funk, Rock, y adapto elementos de estos y otros mezclandolos siempre con el objetivo de crear una parte de batería que tenga un color particular para cada tema y que contribuye a crear un sonido de grupo adecuado al contenido emocional /estético de la composicion.
Esta minha composição "Bushido" tem como inspiração rítmica base a sintaxe destas even 8th's tocadas pelo Jordi Rossi nestes temas:
- Tema nº 2, Unrequited.
- Tema nº 4, Exit Music (for a film), cover do tema original do grupo Radiohead.
- Tema nº 6, Convalescent.
- Tema nº 10, Sehnsucht.
Na tentativa de entender melhor estas influências referidas por Rossi, como o Flamenco Andaluz e o Samba Brasileiro, analisei e entendi da seguinte forma o funcionamento destas even 8th's:
- Como referência ao Flamenco Andaluz, a inspiração surge-me da forma como as bolerias são sentidas na sua respetiva clave de 12 tempos que se acaba por sentir como se de 4 compassos em 3/4 se tratasse.
Este exemplo demostra-nos a forma como este espaço de 12 tempos é sentido de uma forma sincopada (incitando à dança) e como as even 8th's atuam como subdivisão neste mesmo compasso.
Podemos sentir uma ligação muito forte entre a forma como é tocada e sentida a Rumba no Flamenco e como é sentida a Bossa Jazz, sendo as colcheias sincopadas sentidas como even 8th's em ambos os estilos.
Na Bossa Jazz de Tania Maria, escutada no álbum Live 1979 com a própria ao piano e voz, os franceses André Ceccarelli na bateria e Marc Berteaux no baixo elétrico usa estas colcheias even 8th's sincopadas muito semelhantes ao Flamenco na sintaxe, permitindo-me, de uma forma abstrata sentir uma ligação entre estes dois estilos Andaluz e Brasileiro.
Passados 34 anos após o workshop de Madrid, posso dizer agora, com alguma experiência de causa, que entendo a sintaxe das colcheias even 8ths de Jordi Rossi e como elas o influenciaram a ele e a mim.
De forma a obter uma maior liberdade de interpretação rítmica, não sendo associada a nenhum estilo musical em particular, as even 8th's nas minhas 8 composições apresentadas neste meu trabalho têm essa sintaxe característica do resultado da fusão entre o Flamenco Andaluz e a musica brasileira. Apesar de estes dois universos musicais se intercetarem num continuum tempo/espaço, não existe qualquer intenção musical da minha parte em citar algum motivo rítmico ou padrão que nos leve a identificar no concreto qualquer um destes dois estilos. Acontece sim uma fusão de sintaxes puramente abstrata, criando a ilusão ao ouvinte de que as even 8th's são livres de qualquer padrão em concreto.
Composição nº2 - Seigi - "A decisão correta e retidão".
Nesta composição, Seigi - "A decisão correta e retidão" representando o primeiro dos sete códigos de honra samurai, decidi escrever uma melodia ritmicamente complexa a ser tocada por cima de uma parte também ela complexa da secção rítmica. O objetivo foi o de nos obrigar, a nós músicos, a ter um sentido de retidão e de decidir corretamente como e quando tocar nesta composição. De outra forma, se estes dois princípios não forem bem utilizados na nossa forma de tocar e interpretar esta composição, nenhum resultado positivo poderá ser alcançado o que resultaria numa desonra e frustração para nós como bons músicos e interpretes que queremos ser. Logo, o resultado final ficaria comprometido.
Nesta composição Seigi, as partes rítmicas da bateria, contrabaixo e teclados são inspirados nos compassos compostos e irregulares característicos da música folclórica da região dos Balcãs.
Estes tipos de compassos influenciaram vários estilos e compositores em todo o mundo, sendo um exemplo desta influência o compositor húngaro Béla Bartók na música clássica, e.g.:
Um outro exemplo do uso de compassos compostos e irregulares pode ser observado na música do Americano Frank Zappa (arranjo do tema de Frank Zappa "Zomby Woof"), cedido gentilmente por António Torres, leader do extinto projeto "Low Budget Research Kitchen" que homenageava dignamente a musica de Frank Zappa.
Pode-se ouvir também influência desses tipos de compassos, mesmo no Jazz mais tradicional, como é o caso do tema "Blue Rondo á La Turk" do compositor Dave Brubeck no álbum "Time Out" de 1959 com Joe Morello na bateria.
Todo o tema se desenvolve em torno deste compasso composto:
As célebres Vozes Búlgaras usam também nas suas composições compassos compostos e irregulares, como poderemos ter a oportunidade de ver e ouvir nos dois exemplos seguintes:
Finalmente, a música do contrabaixista Israelita Avishai Cohen no jazz contemporâneo denota estas mesmas influências usando também ela os compassos compostos e irregulares como podemos ver e ouvir neste tema.
Como resultado das influências acima indicadas, apresento os diversos processos criativos utilizados na construção desta composição para bateria, contrabaixo, teclados e sax alto.
Ritmicamente, a melodia do sax alto, como se pode ver na imagem acima indicada, é criada em grupos de 5 colcheias por cima do padrão da bateria em 7/8. Isto acontece do 1º compasso até ao 4º. Do compasso 7 ao 11, a melodia do sax é feita em grupos de 3 colcheias por cima de um compasso em 3/8 e 3 compassos em 7/8. O objetivo pretendido, é criar a ilusão sonora de que a melodia é ritmicamente livre.
Devido ao elevado grau de dificuldade da melodia tocada pelo sax alto em 5/8 contra a secção rítmica que está em 7/8, foram realizados vários vídeos abaixo representados com o objetivo de documentar de uma forma mais pormenorizada o processo criativo relacionado com a sua montagem.
Composição nº3 - Yuki - "Bravura e heroísmo".
Nesta composição Yuki - "Bravura e heroísmo" representando o 2º dos sete códigos de honra samurai, decidi escrever uma parte rítmica orquestrada para a bateria tendo como objetivo criar um clima marcial que melhor traduzisse a sensação de bravura e heroísmo num campo de batalha onde um samurai seria o protagonista. Numa sala de concertos dos nossos dias, nós, músicos, necessitaremos de toda a bravura e um sentido de heroísmo bem presentes para sermos bem sucedidos nos objetivos que nos propomos alcançar.
Nesta composição, são de salientar duas grandes influências ritmicas: New Orleans "Second Line" Drumming, descrito acima, e Afro-Cuban 6/8 Bembe.
Podemos ver e imaginar neste exemplo, como seriam os primeiros funerais em New Orleans que viriam a dar o nome ao estilo "Second line" Drumming. A partir do minuto 4:42" podemos ver como o andamento e o ritmo sincopado aceleram dando início a um motivo mais festivo e carnavalesco.
Neste registo audiovisual, podemos ver como seria o padrão usado pelo baterista Warren "Baby" Dodds (primeiro baterista da história do jazz) onde se pode notar toda a influência do estilo "Second Line" Drumming muito bem explicado e demonstrado pelo baterista de jazz Ulysses Owens Jr que ficou reconhecido a nível mundial por integrar o trio do contrabaixista Christian McBride
É com Baby Dodds que a arte de tocar bateria começa, sendo as suas origens referenciadas no estilo "Second Line" Drumming.
No livro Afro-Cuban Rhythms for Drumset (Malabe, F. & Weiner,B. 1990) o ritmo Afro-Cubano Bembé 6/8 é um padrão que é feito em dois compassos de 6/8:
No livro Afro-Cuban Rhythms for Drumset (Malabe, F. & Weiner,B. 1990) esta clave existente nos dois compassos de 6/8 é tranposta para um compasso em 4/4 na qual a subdivisão é a colcheia agrupada na forma de quiáltera de tercina.
Nesta composição, Yuki, no espaço dedicado aos solos, transpus o compasso do ritmo Bembé em 4/4 para um compasso composto em 12/8. Desta forma, pretendi que a colcheia presente no 12/8 se mantivesse igual á colcheia presente no compasso em 5/8.
Ritmicamente a forma é : 4 compassos compostos em 12/8 mais um compasso misto em 5/8.
Na introdução da composição Yuki a orquestração da bateria, apesar do compasso ser composto em (12/8), tem uma sintaxe inspirada na fusão do ritmo Afro-Cubano 12/8 com o estilo "Second Line" Drumming.
Na orquestração para a bateria não se encontra escrita a voz do ride pela simples razão de esta ser interpretada em even 8th's de uma forma mais livre e improvisada.
Nos solos existe uma influência bem mais evidente do ritmo Afro-Cubano Bembe em 12/8. Os compassos são agrupados da seguinte forma: 4 compassos compostos em 12/8 + 1 compasso misto em 5/8.
Composição nº4 - Jin - "Compaixão e benevolência para com tudo".
Nesta composição Jin - "Compaixão e benevolência para com tudo" - representando o 3º dos sete códigos de honra samurai, decidi escrever uma composição em que o tempo lento em forma de balada nos permitisse um estado de contemplação e introspeção. Desta forma, a musica foi pensada e escrita para nos transmitir uma forte sensação de benevolência e compaixão e no fundo, de um estado de paz para com todos e tudo.
Devido ao fato da orquestração para a bateria acontecer de uma forma inteiramente improvisada, e os temas não serem tão complexos como os anteriores na sua construção, não existirá uma descrição técnica tão detalhada como foi necessária nas composições anteriores. Porém, sentir-se-ão pontos comuns presentes em todas as composições como as even 8th's, e os compassos irregulares e compostos. Tendo como base a citação de Schuller, "... [reconfirma-se] a supremacia do ritmo na hierarquia dos elementos musicais; [encontrou-se] uma forma de manter a qualidade ou “democratização” dos impulsos rítmicos" e combinando estas duas características com a necessidade de conceber todos os ritmos como “melodias rítmicas” confirma-se o desígnio pelo qual todo o meu trabalho será direcionado.
Inspirado pelo baterista de Jazz histórico, Elvin Jones, farei uma introdução livre utilizando os bilros como ferramenta percursora.
Como se pode ouvir no exemplo abaixo indicado, mesmo usando bilros, Elvin Jones consegue uma incrível intensidade emocional e poética.
Desta mesma forma, procuro criar uma atmosfera semelhante com o mesmo carater emocional, de modo a preparar um clima propício ao início da melodia e assim dar-lhe o suporte espiritual de que ela necessita.
Esta minha composição reflete uma imensa influência na forma como Elvin Jones, através da bateria e da sua música consegue criar um estado contemplativo transcendental, ao qual se adiciona um grande sentido poético e narrativo que nos proporciona uma sensação de grande espiritualidade e de paz absoluta.
Neste tema -"The Drum Thing", ao minuto 33 e 10 segundos deste disco do John Coltrane - Crescent, podemos ouvir a magia de Elvin John com os bilros.
Composição nº5 - Reigi - "Cortesia e ação acertada".
Nesta composição Reigi - "Cortesia e ação acertada" representando o 4º dos sete códigos de honra samurai, decidi escrever uma composição em que o compasso 3/4, numa velocidade lenta nos transporta para um estado de amabilidade, cortesia para com o próximo e um sentido de ação acertada.
No festival Jazz em Agosto de 1995, tive a honra e o privilégio de poder participar no Coletivo português de percussão o qual foi dirigido pelo histórico baterista de jazz Max Roach.
De todas as coisas mais importantes de que me recordo nesse workshop foi sem dúvida a forma elegante e magica como Max Roach reproduzia um som continuo e quente na tarola com as suas vassouras, imprimindo um groove constante e intenso...incrivelmente mágico!!!
Nesta minha composição, a introdução é acompanhada com vassouras na minha humilde tentativa de reproduzir essa sonoridade tão brilhantemente conseguida por Max Roach.
Na secção de solos do tema Reigi, o ambiente usado pela bateria surge de uma grande influência proveniente da música do guitarrista e compositor Pat Metheny.
É muito notória na música de Pat Metheny, dentro de muitas influências que vão do jazz ao rock, a influência da música e ritmos brasileiros desde a bossa nova ao samba. Por esta razão, muita da interpretação das even 8th's neste tema em particular, goza de uma sintaxe muito semelhante à já referida nos temas em estudo deste meu trabalho.
Neste exemplo abaixo indicado a partir do minuto 0:43 podemos sentir o ambiente conseguido, atravéz do uso da sintaxe das even 8th, pelo baterista Paul Wertico nesta composição de Pat Metheny Group "Minuano 6/8)" do álbum Still Life (Talking) lançado em 1987 pela editora Geffen Records. A performance ao vivo deste tema aqui referido foi realizada no Japão no ano de 1995.
Composição nº6 - Makoto - "Veracidade e absoluta sinceridade".
Nesta composição Makoto - "Veracidade e absoluta sinceridade" representando o 5º dos sete códigos de honra samurai, decidi escrever uma composição em que um tempo lento associado a uma diversidade de compassos irregulares nos obriga a nós músicos a sermos verdadeiros e sinceros na sua execução. De outra forma, e se assim não for, a música pode transmitir uma sensação de desonestidade e de falsa verdade soando portando a algo desprovido de verdade e sinceridade.
Nesta composição Makoto, toda a influência em termos rítmicos é muito semelhante ás já referidas no tema anterior Seigi e, de uma forma geral, em todas as minhas composições aqui apresentadas.
A razão pela qual são usados estes compassos compostos em alternância com os compassos irregulares não se deve a nenhum exercício matemático previamente calculado, mas sim á própria "respiração" da melodia. Assim sendo, o efeito resultante destas "respirações" melódicas/rítmicas assimétricas faz-me sentir uma certa imprevisibilidade no decorrer da composição, mas tendo sempre como resultado uma melodia lógica.
Estas características rítmicas tipos dos de compassos usados, tendem a provocar uma sensação de intencionalidade melódica, impondo-lhe assim um caminho característico mas, claro, muito longe de ser único.
Parece-me bastante óbvio que se outras combinações ou respirações rítmicas fossem utilizadas, o resultado melódico seria diverso e, portanto, outros caminhos e soluções resultariam desse processo criativo.
Como se de coordenadas se tratassem, cada nota musical com o seu valor rítmico e melódico acaba por ser determinante no caminho e no destino que a composição acaba por atingir. Qualquer alteração de um destes valores, levar-nos-iam por outros caminhos e diferentes destinos composicionais.
Esta é sem dúvida uma das maiores e mais belas características de que o universo musical possui: o mundo das infinitas possibilidades leva-nos ao mundo dos infinitos resultados.
Composição nº7 - Meiyo - "Honra e glória".
No tema Meiyo - "Honra e glória", representando o 6º dos sete códigos de honra samurai, decidi compor algo que através do rigor dos ritmos presentes e num andamento médio, quando executado de uma forma precisa e consistente, nos transmita um estado de honra, glória e de dever comprido.
Das influências mais recentes do que de melhor se vai fazendo pelo mundo em termos de composição e arranjos no universo do jazz, o compositor e arranjador Dave Rivello com o seu ensemble de doze músicos, ocupa para mim um lugar de grande destaque.
Este trabalho em particular de Dave Rivello Ensemble - Facing the Mirror foi muito influenciador neste meu tema Meiyo, não só ao nível das excelentes ideias de orquestração, mas também de toda a dinâmica conseguida pela "banda" na interpretação das suas composições. Nas line notes deste trabalho discográfico (gentilmente oferecido pelo Professor Doutor Paulo Perfeito aquando do seu doutoramento em composição em Rochester e aqui neste paragrafo, na qualidade de grande amigo meu e companheiro de palco á volta de 30 anos), o compositor e arranjador de grande relevância da história do jazz Bob Brookmeyer salienta ainda:" His Rochester-based band (who you´re hearing on this recording) plays his music with accuracy, abandon and love."
Sem dúvida de que para além das outras grandes características que a banda demonstra neste álbum, uma que me impressionou bastante foi a precisão, e em particular a do baterista Ted Poor.
É de assinalar toda a sua influência vinda da escola de tocar bateria no jazz tradicional. Porém, Ted Poor consegue destacar-se pela sua conceção bastante mais moderna de tocar em ensemble, o que influência e contribui de uma maneira única no resultado final da composição de Dave Rivello, fazendo-a soar a "nova" e "intemporal".
Nesta composição Meiyo, são utilizadas as mesmas técnicas de orquestração para a bateria que foram utilizadas para a orquestração do tema Yuki. Na orquestração para a bateria não se encontra escrita a voz do ride pela simples razão de este ser interpretado em even 8th's de uma forma improvisada.
Composição nº8 - Chugi - "Devoção e lealdade".
Nesta composição Chugi - "Devoção e lealdade" representando o 7º e último dos sete códigos da honra samurai, decidi escrever uma composição em que através de uma velocidade rápida da música e um nível bastante elevado de precisão no que diz respeito á linha do baixo e todos os outros instrumentos, nos obriga a uma elevada dedicação, lealdade e rigor para com a escrita do tema e os seus pormenores rítmicos, de forma a executá-la na plenitude. Só conseguiremos bons resultados nesta composição se realmente formos dedicados e leais aos seus pormenores de escrita suas relativas exigências fundamentais.
Uma das grandes referências que deu origem a esta composição Chugi, foi uma linha de contrabaixo inspirada no baixista lendário do jazz Steve Swallow.
A 20 de Junho de 2003, inserido no programa Festival em Obra Aberta, tive o privilégio e a honra de tocar com a Orquestra de Jazz de Matosinhos na Casa da Música (sala Suggia) a musica da compositora norte-americana Carla Bley dirigida pela própria. Com ela estavam os prestigiados baixista Steve Swallow e o trombonista Gary Valente com quem senti muito orgulhou de ter tocado.
Tanto em ensemble como a nível individual, a grande oportunidade de ter tocado lado a lado com o baixista Steve Swallow, manifestou-se como uma experiência musical imensamente enriquecedora. A forma intensa de tocar as suas linhas de baixo, a sua sonoridade tão característica, a sua riqueza melódica e sobretudo o seu sentido de partilha e camaradagem, contribuíram como fonte inspiradora para o meu percurso como performer e compositor.
Após 30 anos passados desta incrível experiência, senti a influência ainda fresca deste mestre nesta minha composição Chugi.
Toda a composição é centrada na linha de baixo que tem como objetivo servir de base á construção de uma melodia para o sax alto e harmonia para o piano. A bateria é orquestrada de uma forma improvisada tendo em conta a linha melódica e rítmica do baixo como referência principal. São usadas as even 8th´s como subdivisão principal sendo a gravidade predominante sentida a mínima. A linha rítmica e melódica do contrabaixo tocada á semínima pontuada contra a gravidade da mínima cria o efeito de uma polirritmia de 3 contra 2.
Nesta composição, o baixo é o coração do tema, e á qual todas as outras partes orquestradas estão intricadamente ligadas.
Conclusões
Registo áudio das 8 composições
Parte teórica
Sinto que este este meu trabalho de mestrado em interpretação artística, apesar de pioneiro neste novo formato e por conseguinte não existirem quase nenhumas referencias, poderá ser de alguma forma estimulador e desafiante para colegas que se queiram aventurar no futuro a descobrir um pouco mais do seu "eu" criativo no universo musical, utilizando para isso os mesmos métodos de investigação e documentação artística que foram aqui utilizados, tendo como objetivo um resultado também ele diferente e inovador. Toda a investigação teórica realizada neste trabalho, acabou por ter uma enorme influência e importância no processo criativo realizado, bem como no resultado final daí proveniente. Abriu-me as portas a novas combinações e cruzamento de influências, que resultaram em novas possibilidades de ideias composicionais e outros caminhos a serem percorridos. Os resultados atingidos nesta investigação teórica, por outras palavras, acabaram por moldar e dar uma forma bastante única e original ao meu trabalho. Tenho consciência de que o universo de investigação teórica que realizei não é único nem finito, o que por seu lado é bom e positivo, pois deixa ainda mais portas em aberto para novos trabalhos de investigação e descobertas composicionais futuras.
Considerando a minha investigação teórica como se de um polvo se tratasse, não deixo de sentir que apenas meia-dúzia de tentáculos dos muitos existentes foram realmente usados neste trabalho. Como mero exercício de imaginação, consigo prever que muitos resultados novos e diferentes poderiam ter acontecido se outros tentáculos fossem usados.
Como contributo para para a comunidade de pesquisa artística em música, poderei mencionar os pontos que considero mais importantes como resultado deste processo de investigação e respetiva documentação:
- Toda a investigação, bem como todo o processo de documentação relacionada com os ritmos usados neste trabalho, poderão servir de pontos de partida para novas investigações relacionadas com a bateria, bem como para outros instrumentos, pois na minha perspetiva o ritmo não deixa de ser transversal a toda forma de musica e instrumentos musicais.
- A minha própria composição, poderá ser uma relevante referência influenciadora de e para novos caminhos a serem percorridos no que diz respeito à composição em que o ritmo é o fator em destaque. Tendo como base a citação de Schuller "...reconfirmou a supremacia do ritmo na hierarquia dos elementos musicais; encontrou uma forma de manter a qualidade ou “democratização” dos impulsos rítmicos", e combinando estas duas características com a necessidade de conceber todos os ritmos como “melodias rítmicas”, a minha composição é um resultado possivel.
- Como é obvio, não esgotei todas as combinações possíveis resultantes da investigação no meu trabalho, o que por sua vez pode trazer á comunidade cientifica um sentido de continuidade e de experimentação no universo do ritmo como esqueleto impulsionador de toda uma ideia composicional em possível e constante movimento. Poderá servir, portanto, de exemplo no que diz respeito a combinações possíveis de atingir mediante toda a informação recolhida na investigação.
- O estado da arte neste trabalho, apesar de ser muito direcionado para o resultado que eu pretendi obter nas minhas composições, poderá de alguma forma ajudar a traçar novas investigações, até mais bastante aprofundadas, relacionadas com a matéria em evidencia. Poderá também servir como orientação para novas investigações acerca do assunto em destaque ou simplesmente como um caminho a ser evitado, e, por conseguinte, ajudar a traçar um novo.
O enquadramento, neste caso, do universo Samurai com as composições não é comum nem vulgar o que foi bom, porque deu uma direção forte e objetiva a todo o trabalho realizado.
Em cada um dos temas foi conseguido um resultado original através das influências referidas ao longo do trabalho que são comuns á comunidade musical.
O fato de haver uma abordagem rítmica bem vincada, faz com que as próprias melodias dos temas sejam elas também muito complexas e polirrítmicas o que acaba por ter uma grande influencia no caracter e estilo próprio das minhas composições. Desta forma, acaba também por gerar para os próprios músicos que a interpretam, um elevado grau de dificuldade e de desafio o que torna a performance muito mais cativante e plena de desafios individuais. Também permitiu aos músicos expandir os seus horizontes de formas que possivelmente não teriam acontecido se todo este processo não tivesse acontecido desta maneira tão objetiva e peculiar.
Parte prática
A influência do espaço físico no processo documental:
A influência que teve o espaço físico no processo de documentação foi sem dúvida um fator verdadeiramente importante para a sua realização bem como para os resultados nele obtidos.
O simples fato de a sala ser bastante aconchegante tanto no sentido físico como sonoro, muito contribuiu para um ambiente de trabalho altamente produtivo quer nos ensaios quer nas gravações de vídeo/áudio.
Apesar de inicialmente ter pensado nas minhas composições para incluírem o piano acústico, devido a sala não poder contemplar nenhum, implicou uma nova abordagem ao sintetizador que por sua vez originou uma sonoridade mais caraterística de grupo não comprometendo assim o resultado final.
O tratamento acústico da sala (sala 211 do centro comercial Stop cedida gentilmente pelo João Guimarães) ajudou por sua vez á realização com sucesso de toda a documentação do projeto artístico bem como a realização da gravação final em áudio de todo o trabalho realizado.
No fundo, concluiu-se que é realmente importante para todo processo de documentação artístico resultar com sucesso, existirem estas condições de espaço garantidas.
A influência do lado humano:
Em função das características quer humanas quer técnicas dos músicos que são distintivas conforme referidas no capitulo da Motivação, concluo que a expetativa foi superada e que de fato, como tinha imaginado, o seu contributo foi imprescindível para o resultado positivo alcançado. Como me parece obvio, para tal também contribuíram as suas disponibilidades tanto para os respetivos ensaios como para a partilha de ideias musicais.
A somar a isto, o bom ambiente gerado em grupo contribuiu imenso para atingir resultados de excelência, que de outra forma poderiam ser muito mais difíceis ou impossíveis de atingir.
Concluo, portanto, que a escolha da equipa com quem escolhemos trabalhar poderá ser altamente decisiva no sucesso do trabalho, e eu posso afirmar sem duvida alguma que fiz a melhor escolha para este trabalho. E esta escolha inclui não só os músicos deste projeto como também o Vicente Mateus que foi incansável na realização e edição dos vídeos presentes na documentação, bem como o Miguel Guerra que foi o responsável pela gravação áudio, mistura e masterização apresentada neste trabalho que será lançado em formato de cd á posteriori.
Considerações finais
No fundo, todas estas componentes práticas mencionadas anteriormente só foram possíveis graças ao formato inovador que me foi proposto realizar.
Inicialmente foi-me difícil compreender como realizar e produzir uma investigação desta envergadura devido á ausência de referências neste tipo de formato. No entanto, á medida que fui realizando todo o processo criativo (a composição, documentação e as gravações) foi-se tornando mais claro e objetivo todos os passos a realizar de modo a conseguir o produto artístico em questão. Foi também através deste processo que decidi em acordo com os músicos, que a gravação áudio seria com as seguintes características:
- Foi tudo gravado num formato live (sem cabines nem sistemas de escuta tipo headphones).
- Isto significa que tocamos todos na mesma sala sem divisórias e que o sistema de escuta foi o próprio som dos instrumentos.
Este processo muito mais arriscado de gravação, implica dos músicos uma precisão imensa pois pelo formato da captação não é possível corrigir nenhum erro em nenhum take. A música tem que sair bem do principio até ao fim no mesmo take, não permitindo assim colagens ou overdubs.
Esta opção não foi considerada pelo grande grau de dificuldade, mas sim por ser um sistema que capta muito mais fielmente a essência da musica e a sua performance envolvida, tornando-a o mais real e o menos plástica possível.
Concluo também desta forma que se tivesse optado por outro processo de criação e de gravação, com certeza que obteria um resultado diferente, tendo o resultado aqui obtido pelo processo escolhido deixando-me profundamente realizado.
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