A Tabla Indiana e a sua Nomenclatura como ponte para a criação de Composições de Jazz Contemporâneo
Marco Moura,Projeto Artístico do Mestrado em Composição, ano lectivo 2023/24, realizado por Marco Moura e orientado por Carlos Azevedo.
Resumo
Este projeto artístico em composição baseia-se no uso das composições de tabla como elemento de exploração para a criação de composições de jazz contemporâneo. O processo de escrita das obras foi acompanhado pelo processo de estudo da tabla indiana sob a orientação do mestre Subhajyoti Guha, artista renomeado e pedagogo de Calcutá, Índia.
O projeto faz uma breve introdução à tabla como instrumento, a sua história, o seu contexto, os seus aspetos técnicos, sons e algumas composições solísticas para o instrumento recolhidas a partir de registos das aulas desde 2022. As composições de tabla são acompanhadas por um registo de vídeo e um registo escrito disponível em anexo.
Após esta contextualização são expostas as composições resultantes deste processo de pesquisa artística e de que forma as variações das composições de tabla influenciaram o processo de escrita.
Palavras chave: tabla, composição, jazz, musica contemporânea, improvisação.
Abstract
This artistic composition project is based on the use of tabla compositions as a means of exploration for creating contemporary jazz compositions. The writing process of the works was accompanied by the study of the Indian tabla under the guidance of master Subhajyoti Guha, a renouned a renowned artist and teacher from Kolkata. The project provides a brief introduction to the tabla as an instrument, its history, context, technical aspects, sounds, and several solo compositions for the instrument, collected from class recordings since 2022. The tabla compositions are supplemented by a video recording and a written register attached to the project. Following this contextualization, the compositions resulting from this artistic research process are presented, along with an explanation of how variations in tabla compositions influenced the writing process.
Keywords: tabla, composition, jazz, contemporary music, improvisation.
Agradecimentos
Gostaria em primeiro lugar de agradecer aos meus pais e a minha família pelo apoio constante na vida e nas minhas jornadas musicais.
À minha companheira por todo o enorme apoio e energia dada ao longo deste processo desafiante para a a minha pessoa.
A todos os meus amigos que estiveram presentes e acompanharam todo este processo criativo.
Ao Professor Carlos Azevedo por toda a exigência, partilha e criatividade na disciplina de composição desde o início da minha estadia no Mestrado de Composição da ESMAE, incentivando uma constante procura de novas perspetivas práticas e criativas da música.
Um agradecimento ao Professor Rui Penha pelas aula de pesquisa artística e todas as questões levantadas durante a maturação da proposta para este projeto, que foram certamente importantes para uma melhor conexão com a fonte.
Quero agradecer também à comunidade da ESMAE e ao Curso de Composição, professores e colegas pela constante partilha de conhecimento que foram alicerces importantes para este projeto artístico.
Numa nota especial, agradecer ao Guru Subhajyoti Guha que desde 2022 me orienta na aprendizagem da tabla e da música Hindustani, partilhando imensa informação sobre a tradição do instrumento, sempre de forma dedicada e atenciosa.
Quero agradecer aos meus colegas de turma de mestrado, em especial ao Marco Pereira pelas constantes dicas de composição, edição de partituras e por desafiar uma constante procura musical.
Gostaria de agradecer a todos os músicos envolvidos neste projeto; João Alves, João Próspero, Matilde Lim, Pedro Miranda, Pedro Rebelo, Leonor Santos, Francisca Bonacho, Marta Nabeiro, Bernardo Ferreira e Inês Correia por abraçarem este projeto. E por fim gostava de deixar um agradecimento aos músicos com quem tive a oportunidade de trabalhar ao longo destes anos, e a todas as pessoas que de forma direta ou indireta contribuíram para este projeto. Saindo grato deste processo, um bem haja!
Introdução
As motivações que me levaram a este trabalho são apoiadas na minha curiosidade de aprender algo que me é distante, a nível musical e cultural. A vontade de aprender um instrumento novo que me obrigaria a voltar ao zero na aprendizagem de algo. A curiosidade surgiu a partir de um primeiro contacto com o instrumento através de um amigo que trouxe a tabla para uma jam session em 2019 levou-me a comprar uma tabla durante a pandemia, no meu último ano de licenciatura. De forma autodidata aprendi os primeiros movimentos e sons na tabla, mas foi em 2022 que comecei a ter aulas com Subhajyoti Guha, músico natural de Calcutá que me orienta até ao presente.
A tabla como instrumento traz consigo uma tradição milenar que se desenvolve de forma oral ao longo dos séculos. Tratando-se de um instrumento de música Clássica Indiana, a tabla era no início do século XX provavelmente distante ao público Ocidental, visto que os mestres mantinham algum conservadorismo da tradição. O Ustad Alla Rakah^[Britannica, T. Editors of Encyclopaedia (2024, May 6). Alla Rakha. Encyclopedia Britannica.], pai de Zakir Hussain, que foi o acompanhador de longa data de Ravi Shankar, foi um dos mais reconhecidos músicos de música Clássica Indiana e estabelecer essa ponte entre a música Hindustani e a cultura ocidental. Shankar manteve uma constante motivação de levar a belaza da música Clássica Indiana ao resto do mundo e isso manifestou-se através das suas tours e por colaborações com músicos ocidentais materializadas em registos como o álbum "Rich À La Rakha" (Capitol Rccords, 1968) com Buddy Rich. Esta abertura permite uma circulação de músicos, e por consequência a criação de projetos influenciados por este tipo de música. Zakir Hussain é provavelmente o nome mais sonante presente em projetos em que se une a música Indiana a outros tipos de música. A questão da tradição presente neste tipo de música é algo que vem também da componente religiosa a que a mesma se encontra ligada. A ausência de uma notação clara, como existe por exemplo na música Ocidental, foi esse um dos motivos que me motivou a explorar este tipo de música, aliado ao facto de ser algo que me é distante como músico mas também como indivíduo.
Este projeto propõe o uso das características rítmicas das composições solísticas de tabla como ponto de partida ou inspiração para a escrita de composições que conjugam elementos da linguagem do Jazz e da música contemporânea. O meu percurso no Mestrado de Composição da ESMAE colocou-me em contacto com imensa música de técnicas e estéticas que me eram distantes. A minha curiosidade por estes elementos da música contemporânea levaram-me a fazer um percurso académico fora da minha zona de conforto, aprender orquestração, formas de composição diferentes a nível de trabalho do material musical e instrumentação a que eu estava acostumado a trabalhar.
Em Fevereiro de 2021 adquiri a minha primeira tabla durante o meu último ano de licenciatura em Londres e iniciei os meus estudos, ao início de forma autodidata, com alguns conselhos de amigos que tocavam o instrumento.
Em 2022 comecei a sentir que apesar da procura de informação sobre a aprendizagem do instrumento o meu método autodidata estava a ser impreciso e pouco informado. Devido a isto através dos meus contactos ligados à Índia comecei a procurar por um mestre que me ensinasse todo o processo desde o início. Foi uma procura que me levou meio ano, mas após várias tentativas encontrei o guia que pretendia aprender este instrumento, o Guru Subhajyoti Guha de Calcutá, que é especializado nos estilos de Punjab e Farukhabad. Subhajyoti Guha é o mestre que me acompanha desde Agosto de 2022 até hoje na minha jornada na tabla, na música Hindustani, e que acompanhou também este projeto que se materializa nesta dissertação.
Subhajyoti Guha é um renomeado músico e pedagogo natural de Calcutá, aprendiz do Pandit Sankha Chatterjee. Recebeu prémios como o The Dover Lane Talent Award em 1990-91, The Hirendra Kumar Ganguly Award , from West Bengal State Academy of Performing Arts em 1993 e o Adu Bhatta Award from Salt Lake Cultural Association in 2007. Atualmente é um artista destacado na All India Radio, a estação de rádio e TV de referência na Índia dedicada à música Clássica Indiana.
Fez a sua estreia no renomeado Festival Parampara em Berlim em 1992 com o seu mestre Pandit Sankha Chatterjee, desde então tem-se apresentado em diversas tours pela Índia, Estados-Unidos, Canadá e Europa.
Acompanha regularmente artistas como o Ustad Shahid Parvez, com quem gravou o álbum "Desert Twilight" em 2021 (edição de autor).
O seu trabalho recebeu reconhecimento de artistas de referência como Pandit Ravi Shankar e Ustad Ali Akbar Khan.
Subhajyoti fundou Aavartan School of Rhythmn em 2018 em Calcutá onde leciona atualmente.
Em 2019, enquanto frequentava a Licenciatura em Guitarra Jazz na Middlesex University em Londres, tive a oportunidade de ter aulas com o guitarrista Hannes Riepler e o trompetista Chris Batchelor, que lecionavam também cadeiras de composição e arranjo que reativaram o meu interesse em compor e trabalhar música minha com diferentes grupos. Ao longo dos meus anos em Londres tive a oportunidade de trabalhar bastante em trio e quarteto de forma regular. Mais tarde o meu interesse em outros tipos de escrita fez-me ouvir música que me era mais distante, fora da orla do Jazz, como Lygeti e Messiaen. Estes foram provavelmente os meus primeiros contactos que despoletaram o meu interesse por música contemporânea. O meu interesse em aprender escrita para ensembles de instrumentações diversas ou mais vastas era recorrente mas dos discos que mais me inspirou na altura foi o disco Emanon de Wayne Shorter, um trabalho tardio do artista que reúne o quarteto com Brian Blade na bateria, John Pattituci no contrabaixo e Danilo Pérez no piano e a Orpheus Chamber Orchestra, depois de ouvir este trabalho o meu interesse por aprender composição de forma mais cuidada e orquestração cresceu, levando-me a inscrever no Mestrado em Composição na ESMAE em 2022.
Ao longo do meu percurso no mestrado tive a oportunidade de me inscrever em cadeiras de orquestração, assistir a várias aulas da licenciatura e ter um acompanhamento individual em composição com o professor Carlos Azevedo. O programa curricular, que é exigente, deu-me conhecimento e motivação para escrever e repensar a composição, o material e a abordagem de forma diferente. O curso em si possui uma comunidade rica e isso contribuiu imenso para o meu desenvolvimento.
Durante o primeiro ano dediquei-me a aprender técnicas de composição ligadas à música contemporânea para ouvir, absorver e criar música de formas diferentes aquelas à que estava acostumado. Tive a oportunidade de estrear uma peça para trio de cordas, Versificator, escrever uma peça de orquestra no segundo semestre e estrear uma miniatura para a Orquestra Sinfónica da ESMAE, Wedd-Thingies.
Os ensinamentos adquiridos durante o meu primeiro ano de mestrado motivaram-me também a escrever para concursos de composição, por uma questão de treinar a escrita, o processo de imaginação e criação das minhas obras, tendo tido o privilégio de a obra A Few Sketches about TV para Ensemble ser estreada e premiada com o 2ª prémio ex-aequo em Julho de 2024 no Concurso Internacional de Composição do Festival de Internacional de Música da Póvoa de Varzim.
A instrumentação a ser utilizada no ensemble deste projeto reúne um quinteto de Jazz com o Pedro Miranda no saxofone tenor, eu próprio na guitarra elétrica, a Matilde Lim no piano, João Próspero no contrabaixo e João Alves na bateria e um quarteto de cordas com Pedro Rebelo no violino 1, Inês Correia no violino 2, Francisca Bonacho na viola e Bernardo Ferreira no violoncelo.
A escolha de músicos com os quais colaboro há alguns anos em projetos diferentes para integrarem o quinteto, tem como justificação o nível de entrosamento que temos a nível de interpretação e improvisação coletiva. Algo que julgo que irá facilitar no trabalho das composições com o quarteto de cordas que será constituído por amizades e outros contactos feitos ao longo destes anos. O objetivo tentar atingir uma sonoridade de grupo com o ensemble.
Metodologias
Tratando-se de uma pesquisa artística, esta dissertação propõe o uso dos ciclos rítmicos presentes nas composições de tabla como ponto de partida para a escrita de música para um ensemble, como meio para gerar ou manipular material musical.
Inicialmente irá ser abordada a história da tabla como instrumento presente na Música Clássica Indiana Hindustani, a sua origem, evolução, contexto históricos e os seus aspetos técnicos.
Após esta contextualização irão ser abordadas algumas das composições da tabla e de que forma esta influenciaram o meu processo de composição das obras, através de exemplos do processo de composição.
Este processo incluí uma descrição do meu processo de estudo do instrumento ao longo destes anos: aprendizagem desde os básicos até às composições, uma breve análise e um registo escrito das aulas disponibilizado também nos anexos desta dissertação.
Um dos objetivos neste processo de composição é também encontrar formas de usar o ensemble como um organismo uno, fazer com que músicos de contextos diferentes soem como um só, assim como encontrar um equilíbrio interessante entre a escrita e a improvisação. Tirei partido dos conhecimentos aprimorados ao longo do meu percurso académico neste mestrado e na pesquisa artístico como motor para este trabalho.
O capítulo final desta dissertação é dedicado à apresentação e descrição das composições resultantes da pesquisa deste projeto artístico, através análise do material musical usado para gerar as mesmas, e de passagens específicas em que os conceitos dos cíclos rítmicos são utilizados para gerar e/ou gerar material musical.
Estado da Arte
O meu interesse recente pela aprendizagem da tabla e o interesse pela composição, que cresceu bastante desde que iniciei o percurso no mestrado. Desde o meu contacto com a música de compositores de jazz contemporâneo que fiquei interessado na forma como os mesmos trabalhavam a forma da composição e de que maneira equilibravam a parte escrita com a improvisação, muitas vezes de forma coletiva.
O primeiro disco que ouvi e que teve um grande impacto na minha decisão de aprender a tocar o instrumento foi o disco Crosscurrents (Edition Records, 2018), um trio que reúne Chris Potter no saxofone, Dave Holland no contrabaixo e Zakir Hussain no contrabaixo. Zakir Hussain foi o músico que estabeleceu para mim a ponte entre o Jazz e a Música Clássica Indiana, pela sua mestria mas também pela variedade de projetos que mantêm com músicos das mais variadas vertentes. Zakir integra também um projeto de longa data com o guitarrista John Mclaughlin, Shakti e escreveu uma obra para quarteto de cordas e tabla, encomendada pelo Kronos Quartet, Pallavi em 2017.
No espectro da música Clássica Indiana os álbums "Zhara" (Moment Records, 2022) de Zakir Hussain e Rakesh Chaurasia, e "Anindo and His Tabla" de Anindo Chatterjee (editado pela Audio Rec em 1991) foram dos discos que mais me marcaram dentro desta forma musical. Assim como nomes como Pandit Kumar Bose, Anubrata Chatterjee, Trilok Gurt incortornável Ustad Alla Rakha.
A Tabla: O Instrumento e a sua História
A tabla é um instrumento da família dos membranofones usado atualmente na Música Clássica Indiana. Inicialmente era usada como instrumento acompanhador e ao longo da sua história milenar os músicos foram desenvolvendo reportório solista para o instrumento.
Como instrumento a tabla inicialmente com o nome tabl, em árabe nos tempos da antiga Mesopotâmia. Crê-se que a tabla tenha sido um instrumento que se desenvolveu nessa época e foi trazida pelo povo árabe entre os séculos IX e XI para a Índia.
"Derivada da língua Farsi o termo tabl, que era o termo que se usava para descrever os instrumentos de percussão."
in NAIMPALLI, Sadanand, Theory and Practice of the Tabla, pág. 10.
A ocupação árabe foi algo que contribuiu para a disseminação da tabla como instrumento ao longo território indiano, os reis investiam e mantinham bons músicos nas suas cortes e isso fez com que a música e por consequência os instrumentos como a tabla, se desenvolvessem ao longo dos anos.
Durante a ocupação árabe a capital da Índia passou a ser em Nova Deli, concentrando-se aqui a maior parte dos músicos na época que eram requisitados pela corte. Como instrumento passou a ser utilizada de forma regular em meados do século XIII. Há teorias de que a tabla se desenvolveu de forma um instrumento mais antigo, o mridangam. Um instrumento que é composto por uma carcaça de madeira com duas peles em cada uma das pontas, uma grave e outra mais aguda ambas com um shihai^[O shihai é a pasta de arroz cozido que quando aplicada nas peles e serve para controlar o tom e as frequências das mesmas. Misra, Pt. C. L. (2009) Playing Techniques of Tabla: Banaras Gharana. Kanishka Publishers, New Delhi, página 11.]
Crê-se que a tabla como instrumento tenha surgido na região da Mesopotâmia, mas foi a partir do período de ocupação árabe na Índia que a tabla se desenvolveu de forma mais consistente como instrumento. Durante a ocupação árabe a capital passou a ser Nova Deli^[Mohammad Monsurul Alam. (2008). An analytical study of the evolution of Tabla: Its acoustical properties and creativity in music, página 52] , e por consequência houve uma grande concentração de riqueza e cultura nessa região. Com o acabar dos tempos áureos de mecenato por parte das cortes os músicos começaram a viajar e fixar-se em diferentes partes da Índia e abrindo escolas de música como meio de sustento.
"Quando Nova Deli deixou de ser a capital os músicos fixaram-se em diferentes regiões do país e abriram as suas escolas para sobreviver. As gharanas surgem como consequência destes acontecimentos. Ainda hoje Nova Deli é a principal gharana, a partir da qual se desenvolveram as de Farukhabad, Benares, Lucknow, Punjab e Ajrada"
Guha, Subhajyoti, professor de tabla (informação recolhida em aula online em Junho de 2024 em aula).
As Gharanas
O termo gharana está relacionado com a árvore familiar e a linhagem.^[Naimpalli, S. (2005). Theory and practice of tabla. Popular Prakashan.Stewart, R. (1974), página 42.] Nos tempos antigos antes da era da informação online, os ensinamentos da música Clássica Indiana eram passados através da tradição oral. Os ensinamentos eram passados pelo guru para o disciplo durante vários anos até este ascender a mestre. É muito comum haver músicos com títulos como Guru Ji, Pandit e Ustad.^[Título atríbuído pelo país a músicos de excelência.] As gharanas não definem porém um ensino diferente da tabla, mas sim ligeiras diferenças técnicas no que toca à posição e colocação dos dedos e da mão e na forma como se tocam diferentes sons. O recitativo^[As composições de tabla são transmitidas através de um método recitativo de forma oral através de sílabas e a sua articulação.] varia de região para região. É possível encontrar sílabas diferentes a representarem os mesmos bols.^[ Bol, em Hindi significa palavra, é o nome que se dá a cada som ou conjunto de sons que constituem as composições. Naimpalli, Sadanand. (2005). Theory and practice of tabla. Popular Prakashan, página 80]
As gharanas diferenciam-se também pelo reportório e a interpretação do mesmo. É através destes reconhecimentos que os músicos se relacionam e interagem durante os concertos. Há um tema que é apresentado a partir do qual se tocam variações, se improvisa sobre o mesmo, concluindo com um tihai^[Cadência constituída por numa frase que é repetida três vezes para fechar a composição. Naimpalli, S. (2005). Theory and practice of tabla. Popular Prakashan.Stewart, R. (1974), página. 88]
"Conseguimos saber a gharana a que cada músico pertence através das kaydas que o mesmo toca, porque as Kaydas são a melhor representação músical de cada gharana.
As Kaydas são a cara das gharanas."
Guha, Subhajyoti, professor de tabla (informação recolhida em aula online em Abril de 2024 em aula).
Tabla: Instrumento e Características
A tabla^[Misra, Pt. C. L. (2009) Playing Techniques of Tabla: Banaras Gharana. Kanishka Publishers, New Delhi, página 11.] é um instrumento de percussão que hoje em dia é classificada como um membranofone. É constituída por dois elementos, o Daayaan, que significa direita, tocado com a respetiva mão, que é também o que chamado de tabla, e o Baayaan, que significa esquerda, tocado com a respetiva mão, é o elemento maior do instrumento, de onde podemos ouvir os sons mais graves. Ambos tem um shaayee ou shihai mas no daayaan é que encontramos a nota fundamental, que dependendo da pele que pode ser afinada com a flexibilidade de um tom, acima ou abaixo. Essa afinação é feita através do ajuste dos straps (vaadi) sobre os gatas ou gutta e um ajuste final de micro afinação com o auxílio do martelo de afinação no aro da pele. O dayaan da tabla indiana é parcialmente oco como podemos observar até cerca de metade do tamanho da carcaça e é fabricado por norma em madeira sheesham, um tipo de madeira bastante dura para aguentar as fortes pressões da pele. O baayaan por norma é afinado de forma mais livre, podendo não ter uma relação direta com a nota afinada no daayaan, sendo afinada consoante o estilo de cada intérprete. Normalmente os baayaan's têm carcaças feitas em metal, geralmente aço inoxidável e em casos de instrumentos mais profissionais é recorrente o uso de metais como o cobre, que ajuda a ter uma melhor projeção. O sistema de afinação é igual ao do daayaan. As peles de ambos os elementos da tabla são constituídas por duas peles de cabrito sobrepostas e presas pelo strap de pele enrolado que constitui o aro e os straps de afinação (vaadi). A primeira pele é cortada até às bermas gerando-se assim o kinaar, a borda da pela e posteriormente é adicionado o shihai, o ponto preto de pasta de arroz cozida que equilibra o tom da pele. É muito comum o shihai, abrir com o tempo, ou seja, o mesmo desenvolve pequenas fissuras com o desgaste que é o que fará com que o timbre e o som das peles abram.
Os Sons da Tabla
A tabla destaca-se dos outros membranofones por ter uma nota fundamental que é normalmente afinada em consonância com o são da tempura ou do harmónio que toca a nota base durante as ragas e as respetivas improvisações à volta do tema da mesma. É contudo um instrumento de percussão que requer uma precisão mais cuidada. O modo como se trabalha com a pele e o posicionamento da mão em relação à mesma dita o tipo de som que se obtêm da mesma. Bol é o termo que se usa quando nos referir a um som no instrumento. Existem bols (sons) resonantes e não resonantes que respetivamente se relacionam com o recitativo. Os bols ressonantes são recitados com sílabas abertas e os não ressonantes com sílabas fechadas. Estas seguintes informações foram recolhidas ao longo das aulas de tabla.
Sons do Dayan :
Ta ou Na - som aberto com o dedo indicador no kinar
Tin - som aberto com dedo indicador entre o kinar e o shihai
Tun - som aberto o dedo indicador no meio do shihai
Te - com o dedo no shihai (não ressonante)
Sons do Bayan:
Ge - som aberto com três dedos entre o shihai e o kinar
Ke - som fechado com a palma da mão no centro da pela e a ponta dos dedos no kinar
Existem também alguns sons que são bols combinados que usam os dois elementos do instrumento em simultâneo.
Como:
Dha - Ge + Na
Dhin - Ge + Tin
Thun - Ke + Tin
O recitativo da tabla e esta lógica de sons ressonantes e sons não ressonantes e a sua relação direta com a performance do instrumento são importantes para a forma como o ensino do mesmo evoluiu até aos dias de hoje. A combinação dos diferentes sons é a forma com a qual se formam as composições de tabla. Tratando-se de um tipo de ensino que não tem um registo uniformizado e trabalhado de forma igual ao longo dos tempos é normal que existam sílabas que se pronunciam de forma ligeiramente diferente mas que se referem ao mesmo som.
Neste capítulo irei falar sobre algumas composições que abordei ao longo destes últimos dois anos de aprendizagem na tabla com o guru Subhajyoti Guha. O reportório que aprendi é reportório essencial que combina sons e técnicas básicas da aprendizagem do instrumento. Todas elas trabalham um gesto a partir do qual se desenvolve a composição.
O desenvolvimento das mesmas é assente num ritmo base que se designado de theka. O theka ^[Naimpalli, Sadanand. (2005). Theory and practice of tabla. Popular Prakashan, página 33-34.] é o que na teoria da música ocidental chamaríamos de compasso tipo de métrica em que escrevemos a composição. É com base nela que nos guiamos para subdividir o tempo mas também como acentuar os diferentes sons, uma vez que os sons abertos e os sons fechados são organizados de forma específica de modo a articular sons ressonantes e não ressonantes. Em todos os thekas existe um khali ^[Ibidem, página 83], que é o nome que se dá à parte não ressonante de um theka. Este elemento também está presente nas composições.
Um dos thekas mais comum e emblemáticos da música Clássica Indiana é o Teental.^[Ibidem, página 148.] O teental é um ciclo de 16 batidas, o mesmo número de falanges que temos nos quatro dedos da mão, ou em linguagem da música Ocidental o mesmo que um compasso quaternário sentido com a subdivisão da semi-colcheia. O caráter cíclico destas sequências é o que transmite a sensação repetitiva que estes ritmos transmitem quando são tocados.
O Teental Theka assume a seguinte forma em Konnakol:
Dha Dhin Dhin Dha
Dha Dhin Dhin Dha
Na Thin Thin Dha (Khali)
Dha Dhin Dhin Dha
Este ciclo rítmico é o mais comum de todos e comprime 16 batidas. É muito recorrente o theka ser tocado antes do início da apresentação de uma Kayda como forma de indicar ao ouvinte o tipo de ciclo rítmico a ser utilizado na performance e improvisação da composição em questão.
Kayda é uma das formas de composição que podemos encontrar no reportório da tabla. Sendo uma das mais longas formas existem no entanto outras formas mais pequenas como a Rela^[Ibidem, página 87.] que é uma composição rápida, a Lagi^[Ibidem, página 84] que é uma forma de composição curta com uma frase rápida ou o Gat^[Ibidem página 82] que se trata de uma composição que é apresentada em três velocidades diferentes. As composições que normalmente são apresentadas com um tema principal definido pela primeira frase e o seu respetivo khali e a partir daí geram-se variações, que se chamam de paltas^[Ibidem página 86].
As paltas por norma são uma variação que é concluída com o tema. Ou seja, uma frase distinta que é concluída com o tema. As paltas obedecem na sua constituição sonora à mesma estrutura que o theka e o tema contendo uma primeira parte aberta e o respetivo khali. Muitas das vezes estas variações são uma repetição motívica de partes do tema principal, desfasamentos da frase em si, ou desconstruções do tema usando acentuações que nos dão uma certa sensação de super-imposição métrica. Estas variações por norma são apresentadas de forma sequencial, da mais simples para a mais complexa.
No final das composições há uma secção dedicada a fechar o tema, o tihai, algo que uma frase que é repetida três vezes, similar ao que seria uma cadência na música Ocidental.
As Kaydas
Durante os meus estudos com o meu mestre Subhajyoti Guha ao longo destes dois últimos anos tive a oportunidade de aprender algumas Kaydas tradicionais da escola de Punjab e de Farukhabad. Neste capítulo irá ser abordada a forma e as regras das kaydas, que são uma das várias formas de composição da música Hindustani e uma das mais importantes formas do reportório solístico da tabla. Apesar do seu caráter fluído, as kaydas destacam-se por serem uma das formas mais longas e complexas, que seguem uma data de padrões e regras definidas.
Kaida: This is a well-defined and structured composition replete withsyllables and phrases of Tabla language, generally ending with a resonating phrase and one which shows Khaali-Bhari, also lending itself to making permutations leading to Pallas. Kaida comes from the Persian word "Kaid'' meaning prison. In these compositions, some typical phrases are imprisoned i.e. : they cannot break free into any other variation and hence one sees and hears thesame phrases being repeated in different combinations while expanding a Kaida. Kaida in Hindi or Urdu means 'Rule'. Thus we see that a Kaida is expanded along set patterns and rules.
Naimpalli, Sadanand. (2005). Theory and practice of tabla. Popular Prakashan, pág. 83.
A forma desta composições desenvolve-se a partir de um tema principal, que normalmente é uma frase que explora um gesto específica no instrumento. É recorrente esse gesto ser constituído por uma combinação de bols que o aluno está a aprender a tocar de forma consistente. Como foi o caso do meu processo de aprendizagem. Durante as aulas as composições que me eram sugeridas por Subhajyoti Guha usavam os bols que eu sabia de momento e ao longo do processo de aprendizagem eram introduzidos novos bols à medida que o nível das composições ia avançando.
A primeira coisa a ser praticada durante as aulas na introdução de uma nova composição é a aprendizagem do tema principal com recurso ao recitativo.
O tema principal era sempre tocado lento após este pequeno período de interiorização oral do mesmo. A maior parte dos temas assume este caráter cíclico que a música Hindustani nos transmite, muito por causa da forma como são organizados os sons no espaço da sua métrica. Na maior parte das vezes não há pausas nestas composições mas a forma como os sons são organizados transmite uma certa sensação de espaço.
O tema principal das kaydas é construído a partir do theka do teental, e tem também um khali, uma parte não ressonante tocada entre as batidas nove e doze do ciclo. Uma versão da mesma frase mas sem os sons ressonantes graves do bhayan.
Depois de apresentado o tema são tocadas variações que são uma variação do tema principal que respeita a natureza do mesmo e que é precidida pelo tema. A estas variações, designadas de paltas. As paltas também têm o seu khali, ou seja uma repetição da frase da palta sem os bols ressonantes do bhayan.
O khali nada mais é que uma versão não ressonante de uma frase, esta é a forma mais clara de o identificar como elemento.
As paltas vão-se desenvolvendo ao longo de que a composição é apresentada, tornando-se cada vez mais complexas, tendo por vezes pequenos agrupamentos de acentuações rítmicas diferentes ao ciclo rítmico, dando uma sensação de que é imposta uma polirritmia sobre o ritmo base da composição. A apresentação de uma kayda é tradicionalmente concluída com um tihai.
A aprendizagem das kaydas é um processo demorado e importante para o tocador de tabla absorver de forma consistente o genoma e a mestria que cada composição exige. Durante o meu percurso tive a oportunidade de aprender algumas kaydas, mas um caso em particular foi uma do Ustad Allah Rakha a qual demorei perto de meio ano dominar. Como cada composição tem o seu gesto, dominar o mesmo e as frequências do instrumento é um longo processo. As composições que aprendi ao longo destes dois anos de aprendizagem focam-se no aperfeiçoamento dos bols básicos do instrumento e são reportório tradicional das gharanas de Farukhabhad e de Punjab.
Processo de aprendizagem e registo pessoal
Apesar das composições me terem sido transmitidas nas aulas forma recitada a conselho do meu professor fiz um registo escrito das composições para propósitos académicos pessoais e para o poder mostrar neste dissertação. O processo de aprendizagem das primeiras kaydas foi rápido mas depressa os tema começaram a ficar mais complexos, levando-me muito mais tempo a executá-las com rigor. Aqui está um registo de algumas das composições que achei mais interessantes, e das quais retirei ideias para as composições deste projeto artístico. Encontra-se nos anexos o meu caderno de registos das composições e das aulas em formato digital.
As primeiras aulas de tabla foram dedicadas a aprender os básicos do instrumento, corrigir as posições da mão e dos dedos, assim como as devidas sequências. Após estas primeiras aulas dedicadas a corrigir os erros técnicos, as aulas começaram a ser focar-se no estudo das primeiras composições que utilizavam sequências simples. Ao longo destes dois anos continuei a dedicar-me ao estudo do instrumento, a aprender a técnica, o som e reportório solístico do instrumento.
O ensino da tabla é feito através da tradição oral, todas as composições são passadas através do recitativo, que se assemelha ao Konnakol da música Carnática, embora com o uso de sílabas diferentes. A tabla é um instrumento que não perdoa a nível técnico quem a toca, não há grandes atalhos que possamos tomar em termos de aprendizagem. Os primeiros meses foram dedicados à resistência e a retirar o devido som. A evolução da interpretação de cada uma das composições vive também dessa repetição e prática diária, com e sem instrumento, durante semanas ou meses até serem apresentadas em aula. Todo este processo foi bastante sedimentar, numa janela temporal considerável e por uma questão de registo, escrevi todas as composições que sei e anotações mais específicas num bloco de notas para poder revisitar toda a informação que fui adquirindo nas minhas aulas.
Dha Terekete Te Te Dha Ge Na / Dha Ti Ge Na Thin Na Ge NA
DhaTi Dhage Nadha TereKete / Dhati Dhage ThinNa Kena
KataGege TereKete KataGeGe Nanakete
Obras:
Este capítulo é dedicado às obras que foram desenvolvidas no âmbito deste projeto artístico. Ao longo do processo de escrita muitas coisas foram mudando nas mesmas com o tempo, foram todas elas escritas de forma paralela à minha aprendizagem e interiorização de elementos de composições dos meus estudos na tabla.
Estas obras são acima de tudo a pesquisa, e uma procura pessoal como compositor e músico de explorar formas e métodos diferentes de escrever. A experimentação constante de orquestrações diferentes, formas de organizar os temas e as formas das obras foram alguns dos aspetos que tentem explorar na escrita da música. Este projeto foi no seu início difícil de imaginar pela distância que a tabla como instrumento tem não só a nível sonoro como a nível de linguagem musical. Nada disto seria possível sem uma ponto de contacto forte com alguém que fala o idioma, como é o caso do meu professor e mestre Subhajyoti com quem tenho aulas de tabla desde 2022. A instrumentação que escolhi para o projeto é mais reduzida em relação à que foi planeada inicialmente, por questões logísticas e também pela plasticidade que eu pretendia que a música tivesse.
O quarteto de cordas surge como opção justificada pela quantidade de opções que o mesmo trás, e pelo desafio de o conseguir fundir um elemento musicalmente sensível com um quinteto de jazz tradicional. Usar todo o ensemble como um organismo uno foi uma das maiores dificuldades que encontrei durante o processo de escrita. Seria fácil cair na tendência de usar o quarteto de cordas como uma extensão do quinteto, mas mantive durante o processo de composição esse cuidado como uma premissa importante para o processo criativo.
As dificuldades que senti a nível formal na escrita incidiram também sobre a linguagem musical que é díspar entre os membros do ensemble. Como fazer a informação ser clara, para músicos com escola de Jazz e escola de Clássico. O desbloquear destas questões práticas que são importantes para a música foi crucial para conseguir trabalhar os materiais musicais da forma que pretendia, seguindo a premissa de encontrar uma escrita que aponte para um ensemble como organismo tanto nas partes escritas como nas partes improvisadas.
O trabalho do material musical foi também ele feito de modo a obrigar-me a explorar técnicas de composição que me eram mais distantes. O processo de escrita foi marcado por um constante desconforto necessário para alcançar os objetivos. O trabalho da forma, desenvolvimento do material musical, a plasticidade entre as partes escritas e as improvisadas foram desafios que encontrei de forma constante ao longo do processo criativo.
Os ciclos rítmicos e as variações das composições de tabla foram usados para gerar e/ou manipular material musical e também por vezes manipular certos elementos na orquestração; como as dinâmicas e o timbre. Houve sempre um cuidado em não cair em soluções que fossem típicas, como por exemplo usar estes elementos unicamente na secção rítmica ou nas melodias.
A nível de forma as composições também abandonam as formas similares aos standards. Este tipo de decisões são consequência do meu interesse por formas irregulares, devido ao meu recente contacto com música contemporânea, e ao mesmo tempo por interesse já antigo por composições cíclicas que se encontram nos discos de Jazz Moderno dos anos 60 de grupos como o segundo quinteto de Miles Davis. Ao longo das composições os temas são na sua maioria curtos, sendo desenvolvidos ou desconstruídos ao longo da composição.
A logística do projeto não me permitiu ter um grupo de trabalho fixo ao longo de determinado tempo, mas permitiu-me ter alguns músicos com quem já trabalho há alguns anos como o João Próspero no contrabaixo, o João Alves na bateria, o Pedro Miranda no saxofone e membros com quem trabalhei pela primeira vez nas cordas como o Pedro Rebelo e a Leonor Santos nos violinos, Francisca Bonacho na viola d'arco, a Marta Nabeiro no violoncelo e o Hugo Moreira e Marco Pereira na direção musical.
Weird Places - para Quarteto de Cordas
Esta peça foi escrita no final do ano de 2023 em contexto de aula e melhorada ao longo do ano letivo corrente. Numa primeira instância o material da peça baseia-se num motivo pentatónico maior, motivo esse que é alterado e harmonizado com recurso a harmonias com três centros tonais resultantes da divisão da oitava em três partes: dó, mi e sol#
Após a introdução deste tema há um desenvolvimento do mesmo e uma mudança de funções no quarteto como organismo, a melodia passa a ser atribuída à viola e o acompanhamento do mesmo passa a ser feito pelos restantes instrumentos na região aguda. Para dar uma sensação diferente recorri ao padrão de bols TereKe, um padrão de tercinas na tabla, usando também uma acentuação diferente e omitindo certas partes do ritmo de forma a dar uma sensação de continuidade ao padrão.
Na secção B o tema é desenvolvido com motivos imitativos que se interligam resolvendo em cadências. O espaço e o trabalho da harmonia de forma linear foi algo visto com cuidado nesta parte.
Na secção C há uma mudança de compasso para compasso ternário que encadeia para uma melodia acompanhada em pizzicato que usa a mesma harmonia da introdução do Tema A. A seccção D apoia-se numa ideia que consiste num riff orquestrado no violoncelo ao estilo de slow blues. Há uma certa procura de ideias que quebram a simetria com recurso a melodias e camadas de harmonia que surgem e desaparecem de forma subtil. A melodia de viola toma a liderança como anacruse para a secção F que se assume como um interlúdio para a secção G. A secção F é constitúida por uma série de frases que cadenciam de forma suspensa. O objetivo foi escrever uma secção em que a frase lidera o movimento e encaminha para a cadência, à semelhança do que seria um rubato escrito.
Na secção F recorri a uma das paltas da composição Dha Ti Dha Ge Na Dha Terekete para construir o acompanhamento da melodia. A melodia é uma re-exposição do tema principal com uma ligeira variação. A palta usada neste caso é uma das últimas variações da composição que nos dá a sensação de um ritmo retrógado, devido ao agrupamente de duas quintinas e uma sextina completando dois ciclos de dezasseis notas. A ideia consistiu em criar uma sensação de movimento constante mas impondo um ritmo harmónico mais rígido ao contrário do que acontece nas restantes partes da obra.
Rupaak - para Guitarra Elétrica e Quarteto de Cordas
Esta peça surge como curiosidade de trabalhar o ritmo sem recurso a uma secção rítmica e trabalhar o ciclo de Rupaak Taal nesta formação menos usual.
Como foi descrito nos capítulos anteriores, o Rupak Taal é o que chamamos na música Ocidental de um compasso 7/4. O Rupaak Tall é acentuado em grupos rítmicos de 3 + 2 + 2.
A ideia a partir da qual imaginei esta peça foi a exploração do padrão rítmico com recurso à técnica de ricochet (ressalto do arco na corda), neste caso um ressalto controlado e acentuado em correspondência com o agrupamento rítmico do ciclo.
Com base neste material comecei a edificar o resto da peça, com recurso a outro material que gerei a partir da guitarra: uma sequência de slash chords onde as tríades do topo voicings descem no registo em movimentos paralelos de tons inteiros.
A nível formal há um tema principal que é desenvolvido com recurso a contra-melodias do segundo violino e um acampanhamento em pizzicato do violoncelo. A viola é neste caso o alicerce desta secção continuando a marcação da clave rítmica. A escolha da corda sol solta para manter esta pedal justifica-se pela ressonância mais rica que a mesma concede ao ser percutida pelo arco com as acentuações. O segundo violino de forma híbrida trocando de funções na segunda linha do tema com o primeiro violino assumindo o acompanhamento. No final da apresentação do tema recorri a harmonia por quartas durante a cadência.
O segundo tema apresentado é uma variação do tema principal, com base na frase principal de uma kayda em Rupaak-Tall; que usa o seguinte tema:
Dha TeTe DhaDha TeTe Dhage ThinNa GeNa DeteDete DhaDha TeteDhage ThinNa KeNa
Foi com base na articulação deste tema que escrevi a variação do tema principal. Numa primeira instância ele aparece na guitarra, e é orquestrado com recurso a contra melodias e movimentos imitativos. O cuidado com a direção das melodias em termos de registo foi algo tido em conta na construção do tema, assim como o recurso a resoluções inesperadas e quebras do ciclo em sítios inesperados do compasso.
Ao imaginar esta peça tinha como uma das premissas iniciais a existência de uma secção de solos em que a guitarra era acompanhada pelo quarteto de cordas, e essa ideia foi mais tarde desenvolvida a partir do material musical que inicia a peça: os acordes da guitarra. Inicialmente o material é apresentado em rubato e depois de desenvolvido, é orquestrado nas cordas. Nesta secção o andamento passa também para uma subdivisão à semínima mantendo o mesmo agrupamento rítmico do Rupaak Taal.
A forma desta obra foi pensada antes do desenvolver do material musical. Após a introdução, tema e variação a mesma encerra-se com uma cadência similar à cadência do tema principal.
Sun Settings - para Noneto
Nesta obra para quinteto de jazz e quarteto de cordas foca-se a nível formal e estilístico explorar alguns dos mecanismos de composição contemporânea que absorvi durante estes dois anos com as minhas influências prévias do jazz. O material inicial da composição foi uma progressão fruto de uma improvisação no piano.
Apesar do material musical ser forte senti a necessidade de o complementar com uma secção que o introduzisse. A solução que usei para esta questão foi usar um motivo orquestrado a partir de notas longas orquestradas através de um gesto que é iniciado pelo piano. Nesta introdução procurei formas de explorar o timbre da mesma nota, o ré bemol, sobrepondo harmonias com base em harmónicos sobre o mesmo, que são encerradas com um ataque seco.
No desenvolvimento da obra recorri a uma palta da composição DhaTere TekeTaKa TeReKeTe DhaTere KeTeTaKa TeReKete ThinNa KeNa do Ustad Alla Rakha como ponto de partida para a orquestração do quarteto de cordas.
Neste caso em particular a variação foi usada como meio de manipulação do material musical. No violino 2 e na viola o fraseado, a acentuação e as arcadas seguem a mesma articulação da variação quando esta é tocada na tabla. O countour melódico das notas foi um recurso importante na escrita deste trecho músical.
A nível formal pretendi um afastamento das formas de escrita que me eram mais próximas, típicas dos Standards, ou do Jazz Contemporâneo. Procurei servir-me das secções de solo como uma extensão do desenvolvimento do tema. Na secção E da obra como se pode observar na próxima imagem orquestrei os acordes como kicks no quarteto de cordas. Numa procura por irregularidade o compasso de 7/8 da secção E é baseado numa versão mais lenta da frase final da palta - DhaGe Thin Na; servindo como acentuação e ponte para o início da progressão.
As seguintes secções são um desenvolvimento do tema em variação, em que é usado apenas um fragmento da palta com os bols TeKeTa. Este motivo foi usado para orquestrar as linhas de guitarra e de contrabaixo sobre o qual se desenvolve o tema numa harmonia modal.
Off the End - para Noneto
Esta obra foi a última obra a ser escrita no âmbito da dissertação e parte de um tema muito concreto composto na guitarra elétrica. A nível formal comprime em si uma mistura mais plástica entre material escrito e material improvisado; por vezes por sugestão imposta ao músico. Ao desenvolver o tema na guitarra explorei também formas de harmonizar a melodia com recurso a harmonia não funcional, com mais atenção à sensação contrapontística da voz do topo com a voz do baixo e consequente organização das vozes interiores.
Após introduzir o tema a composição afaste-se do mesmo num ambiente modal com centro tonal em E Frígio, em que os gestos são orquestrados com recursos ataques em pizzicatos das cordas, acordes dissonantes do piano e notas longas que se estendem a partir das ressonâncias dos acordes.
A nível de orquestração procurei na escrita deste trecho estabelecer uma ligação entre as diferentes camadas, sobrepondo diferentes timbres orquestrados pelos diferentes registos. Há um certo caráter plástico em que cada pequeno elemento se funde e dá continuidade a outro. Um exemplo disso é o ataque do piano que serve como extensão do acorde em pizzicato no compasso 20. Este ataque é também antecedido pelo acelarando escrito do contrabaixo nos últimos dois tempos do compasso 19. Recorri ao uso dos ataques como mecanismo para a orquestração no compasso 23 invertendo as funções entre as cordas e o piano. Após esta secção o tema surge pela primeira vez com a harmonia, orquestrado também com o quarteto de cordas.
Na secção C recorri a uma palta como meio para manipular material musical, neste caso em particular referente ao ritmo da linha de baixo que é dobrada com a mão esquerda o piano. A palta usada aqui é a seguinte : DhaTere KeteDha– TeReKeTe DhaDhaTeReKete DhaGe ThinNa KeNa.
Após esta exposição rápida de parte do tema do tema surge uma secção de improvisação livre com material específico sugerido que introduz uma nova ideia musical inspirada no primeiro tema da Sinfonia de Câmara Nº1 de Schoenberg.
Após ouvir esta peça ao vivo duas vezes, e várias versões diferentes fiquei fascinado pela forma como os temas são trabalhados, pela fluidez das transições e pela forma que a sobreposição dos diversos temas da obra se conjuga com o caráter atonal da mesma. Tratando-se de material muito com um caráter forte e plástico achei interessante poder explorá-lo de forma diferente e escrever uma melodia e harmonia por cima de uma linha de baixo que se apoia neste material.
A forma como explorei a harmonia na escrita deste trecho focou-se mais no espaço harmónico, exploração dos timbres e poli-acordes. A melodia principal assumida pela guitarra e pelo saxofone tem um caráter mais tenso com recurso a frases rápidas e bem marcadas colocadas nos espaços da harmonia. Enquanto que as cordas complementam o movimento do piano com figuras rítmicas mais longas. A forma como Schoenberg trabalha as camadas nas suas orquestrações foi um parâmetro que me motivou a procura de uma orquestração densa, em que a harmonia é ambígua e o movimento é constante. O maior obstáculo a esta tarefa foi encontrar o espaço mais indicado para cada elemento. Sinto que atribuir sonoridades específicas a cada um dos objetos sonoros foi a forma mais eficaz de organizar o pensamento de forma a resolver este problema composicional.
A forma como a improvisação surge nesta obra foi sendo arquitetada consoante a necessidade de trabalhar material de forma mais plástica. Na secção F foi escrito um solo para o violoncelo que interage na de forma mais direta com o piano na sua fase inicial, assumindo um papel livre após o compasso 84. A guitarra, o saxofone e as cordas interagem com recurso a improvisação com material sugerido, o piano com recurso ao pedal constante como meio para estender a duração das ressonâncias numa camada mais subtil.
Este momento de improvisação mais fechada é encadeado por um momento solístico do quarteto de cordas para uma secção de solos aberta, com harmonia modal no centro tonal de lá menor. A linha de baixo foi feita a com base na estrutura angular da melodia da minha peça "A Few Sketches about TV" composta este ano.
A opção de reutilizar material musical que já existente no meu ideário era uma solução que nunca usei, mas que vai de encontro ao trabalho que tem sido o meu foco principal durante as minhas aulas individuais de composição. A exploração desenvolvimento e desfragmentação constante de material como forma desenvolver a obra. Na escrita deste excerto, foram usadas as primeiras cinco notas do fragmento melódico para como material para a escrita uma linha de baixo; o material foi transposto e ajustado para poder usar as cordas soltas do contrabaixo como recurso técnico. A nível rítmico há uma extensão do valor rítmico das notas e um desfasamento do ritmo da frase ao longo dos compassos para causar uma sensação de continuidade cíclica da frase.
Esta secção de solos foi a forma que escolhi para poder introduzir o theka de Rupaak Taal na sua forma invertida, sob a forma de 7/8 agrupado da seguinte forma; 2 + 2 + 3. Neste desenvolvimento final da obra é introduzido o tema principal na sua íntegra, a secção A em 7/8 e depois a secção B em 4/4. A nível formal pretendi que após o tema existisse uma secção de solo de bateria acompanhado por todos os membros do ensemble.
Na orquestração desta orquestração dividi os objetos sonoros da seguinte forma, melodia dobrada em oitavas nos violinos 1 e 2, acompanhamento na viola d'arco e no violoncelo com suporte da linha de baixo dobrada pelo contrabaixo e o piano no mesmo registo, e na guitarra o uso de um patch que conjuga síntese granular com um efeito de ring modulator. Os compassos de 3/8 e 5/8 surgem de novo como recurso para gerar alguma assimetria que acaba por dar a sensação de fluidez ao movimento.
No final da peça há um retorno à orquestração que se foca no trabalho do timbre, com recurso a alguma material do início da peça, como os acordes do piano e a orquestração dos ataques. A melodia do saxofone dá o gesto final para o ultimo acorde politonal que está orquestrado com as cordas e o piano.
Conclusão
Os temas que tive oportunidade de abordar nesta dissertação são todos eles fruto de um trabalho sedimentar ao longo dos últimos anos, tanto na tabla como na composição como disciplina. Ao longo do processo criativo encontrei imensos obstáculos, que não provinham do processo de composição. A música Hindustani é toda ela baseada numa cultura de tradição oral, e por consequência muita da bibliografia tinha informação que se contradizia. Devo um grande agradecimento ao meu mestre Subhajyoti Guha que sempre se mostrou disponível a dialogar sobre a história e a tradição da tabla, foi graças aos seus depoimentos das aulas que foi possível ter um enquadramento histórico mais coeso e uma conexão mais profunda e honesta com as composições solísticas de tabla que fui aprendendo ao longo destes anos. Sinto que este trabalho foi o início de uma exploração mais profunda da composição como arte devido à quantidade de informação e recursos a que tive o privilégio de ter acesso. Ao acompanhamento constante com pessoas que me souberam guiar tanto nos processos de aprendizagem como nos processos criativos. A quantidade de aprendizagem que retiro deste projeto é impossível de ser mesurada. No entanto concluo que o melhor dos desafios na realização deste projeto artístico foram todos os bloqueios criativos, problemas composicionais, com que me deparei ao organizar o pensamento, e por fim materializar as minhas ideias musicais.
Bibliografia
- Britannica, T. Editors of Encyclopaedia (2024, May 6). Alla Rakha. Encyclopedia Britannica.
- Caudhurī, V. R. (2017). The dictionary of Hindustani classical music. Motilal Banarsidass Publishers Private Limited.
- Kippen, J. (n.d.). Cambridge Studies in Ethnomusicology, The Tabla of Lucknow.
- Manzione Ribeiro, F. (n.d.). Música em diálogo: talas da música hindustânica na bateria de jazz.
- Misra, Pt. C. L. (2009) Playing Techniques of Tabla: Banaras Gharana. Kanishka Publishers, New Delhi.
- Mohammad Monsurul Alam. (2008). An analytical study of the evolution of Tabla: Its acoustical properties and creativity in music.
- Naimpalli, S. (2005). Theory and practice of tabla. Popular Prakashan.Stewart, R. (1974).
Anexos
Partituras Gerais das Peças